Progresso material ainda é pouco no País
A redução da desigualdade depende essencialmente da vida pública, da política e da consciência de cidadania André Lara Resende* Há uma frustração generalizada, inegável e justificada quanto ao estado das coisas no Brasil hoje. Pode-se afirmar, sem receio de pecar pelo exagero retórico, que o país encontra-se num estado deplorávelA frustração das esperanças de que o país chegasse ao século 21 como um país equânime e desenvolvido tem sido atribuída, dependendo da orientação ideológica, a razões distintas. De um extremo ao outro do espectro ideológico - que estreitou-se de forma significativa ao longo das últimas décadas - as análises críticas concentram-se essencialmente em encontrar as razões para o crescimento inferior ao esperado.É fato que o crescimento das últimas três décadas foi muito inferior à média histórica, mas a verdade é que o país cresceu e enriqueceu. Houve, sim, uma enorme deterioração na qualidade da vida. O país continua desigual e injusto. Burocraticamente regulamentado, vergado por uma carga fiscal sem precedentes, para financiar um Estado incompetente nas suas funções elementares e dedicado a criar dificuldades em todas as esferas da vida. A superpopulação caótica dos grandes centros urbanos, a falência da segurança pública e o descrédito da política, estão, com certeza, na raiz do sentimento de que não houve progresso material.Habituamos-nos a identificar crescimento com aumento do bem-estar e da qualidade de vida. Comdesenvolvimento harmônico, para usar um termo que saiu de moda. É evidente que a riqueza material é um dos elementos determinantes da qualidade de vida. Até que se tenha atingido um padrão mínimo de riqueza material, muito provavelmente, é impossível falar uma sociedade desenvolvida. Esta a razão pela qual a identificação do crescimento econômico com o desenvolvimento seja tão recorrente. A associação automática entre o crescimento econômico e a melhora da qualidade de vida, foi sempre, na melhor das hipóteses, uma simplificação operacional da teoria do desenvolvimento. Neste início de século, quando já não há mais dúvida quanto aos estreitos limites ecológicos do crescimento mundial, quando a riqueza material para o mundo como um todo não é mais uma restrição à qualidade da vida, é preciso reconsiderar o arcabouço teórico do desenvolvimento.Deveria saltar aos olhos que o cerne do desenvolvimento hoje, tanto para o mundo, como para os países individualmente, transferiu-se da questão do crescimento para a questão da eqüidade. O mundo como um todo é materialmente rico. A questão do nosso tempo não é mais como crescer, mas como melhorar a qualidade da vida para todos.Esta não é uma tarefa fácil. Se garantir o crescimento econômico nunca foi fácil, melhorar a qualidade de vida para todos é um desafio muitas vezes mais complexo.Creio que o ponto de partida é a admissão de que o moderno capitalismo de massas revelou-se um sistema imbatível de produção de riqueza. A superioridade teórica do sistema de mercados competitivos na alocação de recursos, como um paradigma conceitual que deve pautar a organização da economia, é hoje incontestável. Infelizmente, na prática, mesmo os países que defendem oficialmente a superioridade da economia de mercados competitivos, dela se afastam com muito mais freqüência do que seria desejável. Especialmente quando se trata de restrições ao comércio e ao movimento de capital e trabalho. O resultado, com certeza, é que o mundo é menos produtivo, menos afluente, do que poderia ser.Nas últimas décadas, o Brasil fez grandes progressos institucionais no sentido de aproximar-se de uma economia de mercado. A superação da inflação crônica foi acompanhada pela tomada de consciência da necessidade do equilíbrio fiscal e de uma política monetária voltada para estabilidade da moeda. A realidade e nossa compreensão dela são circunstanciais. A melhor forma de conduzir a política macroeconômica está em constante processo de discussão teórica e de aprimoramento. Ainda há, entretanto, muito a ser feito para nos aproximarmos do estado das artes.Do lado fiscal, a agenda é longa. A consciência da necessidade do equilíbrio orçamentário intertemporal e de estabilizar a dívida pública numa proporção sustentável da renda ainda está por se consolidar. O precário equilíbrio das contas públicas ainda está baseado integralmente no aumento da carga tributária. Carga que atingiu o limite do tolerável. Tolerável, não no sentido de aceitável por critérios subjetivos, mas tolerável no sentido de que, na sua forma atual, a carga tributária desestimula o investimento, o emprego e configura-se como um entrave para que a economia reencontre o dinamismo perdido.Talvez ainda mais grave do que a estrutura tributária caótica, está um arcabouço regulatório barroco. Impostos e regulamentação burocrática penalizam de forma inconcebível o emprego e a iniciativa empresarial. Para a grande maioria das empresas é impossível corresponder às suas exigências. O custo de adequar-se às exigências legais e tributárias - o chamado custo de compliance - no Brasil hoje inviabiliza as empresas menores e inibe o aparecimento de novas empresas. Toda nova iniciativa empresarial só progride na fronteira da ilegalidade. As empresas que crescem, tornam-se visíveis, o que inviabiliza a operação à margem da legislação, e só tem duas alternativas: ou dá um salto de escala - na maior parte das vezes ao ser adquirida por um grande grupo - ou regride. A empresa média é inviável. A competição, profundamente inibida.Não há receita fácil para superar os desafios do subdesenvolvimento. A experiência demonstra que não basta equacionar as questões macroeconômicas básicas, isto é, o equilíbrio fiscal e a estabilidade monetária, para que as condições para a retomada do crescimento estejam restabelecidas. Mais do que nunca, parece-me claro que o mero crescimento não é condição para a superação do desenvolvimento. Não se deve daí concluir, de forma apressada e equivocada, que a economia mais eficiente na produção de riqueza não seja desejável, ou condição para a melhor qualidade da vida. Apenas não é suficiente.Não se pode abandonar a agenda de aproximar a economia do ideal competitivo, de reduzir os entraves ao emprego e à iniciativa empresarial, mas o momento requer algo mais. É preciso entender porque houve uma tão profunda deterioração na qualidade percebida de vida.O projeto de desenvolvimento da segunda metade do século 20 frustrou-se por não compreender a natureza aparentemente irreconciliável da ética e dos valores do moderno capitalismo de massas com os ideais de Alexis de Tocqueville: as virtudes cívicas, a cidadania ativa e as atividades comunitárias. Aceitar isso não implica subscrever os argumentos dos tradicionais críticos da economia de mercado. Evitar, sobretudo, a tentadora conclusão de que restaurar as virtudes cívicas requeira ainda maior ingerência do Estado em todas as esferas da vida.É possível que ao atribuir o efeito desagregador sobre a vida pública ao moderno capitalismo de massa - e não sobre simplesmente a modernidade - induza-se o interlocutor a esse equívoco tão freqüente. A desvalorização da vida pública e da cidadania é, entretanto, resultado da combinação do capitalismo com a democracia de massas que constituem a modernidade. Como o sistema de mercado capitalista não dispõe do mesmo apoio intelectual, das mesmas credenciais, de que dispõe o sistema do voto democrático, no afã de encontrar respostas fáceis, conclui-se com muito mais freqüência que a solução é sacrificar o sistema de mercado capitalista, do que sacrificar a democracia. Dada a comprovada e esmagadora superioridade do sistema capitalista na geração de riqueza, concluir que a solução é sacrificar o capitalismo, é quase tão absurdo quanto concluir que a solução é sacrificar a democracia.Volto ao fio do argumento : a modernidade - entendida como a organização da sociedade como democracias capitalistas de massas - revelou-se capaz de progressos materiais e científicos extraordinários. Esta mesma modernidade demonstrou-se incapaz de resolver de forma automática as questões da exclusão social e da desigualdade. A redução das desigualdades, não sendo conseqüência automática do progresso material e do avanço da modernidade, é uma opção política. Depende essencialmente da vida pública, da política e da consciência da cidadania.A desvalorização da vida pública e o descrédito da política têm, entretanto, raízes profundas na modernidade. Possivelmente, como defende Hannah Arendt, está associada à própria valorização do trabalho e da vida privada que acompanhou o avanço do capitalismo industrial do século 19. Um fenômeno que atinge o seu ápice com a consolidação do capitalismo de massas globalizado deste início do século 21.A modernidade, enquanto desvalorizadora da vida pública e da política, é sempre um fator de erosão progressiva da base cultural e institucional da qual ela não pode prescindir. No caso do Brasil, como dos demais países onde a tentativa de implantar a essa base cultural e institucional coincide no tempo com aspectos avançados da modernidade, a situação é particularmente perversa: o sucesso da modernidade no segmento mais avançado da sociedade desvaloriza a vida pública, a política e a cidadania, muito antes da incorporação dos setores excluídos .Ora, se não existe alternativa à altura da moderna democracia capitalista de massas para garantir a criação de riqueza, se a modernidade desvaloriza a vida pública e a política, sem o que não há como reduzir as desigualdades, estamos diante de um desafio extraordinário. O esforço para superar o subdesenvolvimento e transformar os países em sociedades democráticas e equânimes será necessariamente frustrado enquanto não for encontrada a resposta para o desafio de compatibilizar a modernidade com a valorização da vida pública e da cidadania.A saída não é evidente nem simples. * André Lara Resende é economista e foi presidente do BNDES no governo FHC.