"A Previdência não é culpada"

16 Jan 2007
ENTREVISTA A tributarista Misabel Derzi diz que o foco deveria ser o desvio de recursos A MÁRCIA PINHEIRO Faltam solidariedade social e honestidade na discussão sobre os rumos da Previdência Social no Brasil. Na realidade, os recursos determinados para o pagamento de pensões e aposentadorias vêm sendo sistematicamente usados para outros fins, sobretudo para honrar os encargos da dívida mobiliária federal. O que fere frontalmente a Constituição brasileira. A posição polêmica e corajosa é de Misabel Derzi, professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e presidente da Associação Brasileira de Direito Tributário (Abradt). A seguir, os principais trechos da entrevista que concedeu a CartaCapital. CartaCapital: A discussão sobre a Previdência Social no Brasil privilegia o suposto déficit, que seria de cerca de 50 bilhões de reais ao ano. O foco está certo Misabel Derzi: O foco está profundamente errado. A previdência pública, no mundo inteiro, não foi pensada para se auto-sustentar. Há dois modelos básicos: o primeiro, adotado pela maior parte dos países do mundo, é sustentado pelas contribuições sobre salários, repartidas entre empregados e empregador. Mas não puro: sempre com garantia e apoio do Estado. Nenhum país adota um sistema de financiamento exclusivamente por meio de contribuições. O segundo modelo prevê que o financiamento principal da previdência seja originado por impostos. CC: Esse primeiro modelo foi o determinado pela Constituição de 1988 no Brasil. MD: Por essa e por todas as outras. As Constituições brasileiras sempre falaram que a Previdência Social seria sustentada por um tripé: o trabalhador, a empresa e o Estado. A questão do déficit previdenciário é mal colocada; é falseada, por várias razões. O déficit é o fiscal da União. Há uma inversão injusta, de se acreditar que o problema está na Seguridade Social. CC: Quais razões que acabam por falsear o problema MD: Os gastos com saúde e assistência social tornam-se cada vez maiores no mundo inteiro. Por quê Primeiro, o tempo médio de vida do trabalhador alonga-se. Em segundo lugar, existem crises de recessão, desemprego maior e concentração de renda. Ou seja, a renda não cresce na mesma proporção do PIB e se mantém concentrada. Os salários tornam-se menores. E a Previdência Social se alimenta basicamente das contribuições sobre os salários. A economia informal é outro fator grave. No Brasil, além dessas causas, existem algumas peculiares. Há uma crescente falta de solidariedade social. Aumenta a percepção de que a Previdência e a Seguridade Social são ônus e que nós deveríamos nos livrar disso. Estamos, aqui, cada vez mais, com um discurso antiético, mesmo do ponto de vista capitalista. Os grandes capitalistas no mundo inteiro, até seus ideólogos como Milton Friedman, da Escola de Chicago, sempre preconizaram assistência social. Todos sabiam que o capitalismo tem como característica a acumulação e a concentração de renda. O mercado, por si só, não pode resolver os problemas de desemprego e de concentração de renda. Os miseráveis tornam-se um problema social cada vez maior. Todos os países capitalistas com um mínimo de ética sabem disso e se dispõem a resolver o problema. CC: Mas há um problema de financiamento da Previdência no Brasil ou não MD: Existe um desvio de recursos destinados ao financiamento da Previdência. É um problema crônico no Brasil. Os recursos sempre foram desviados e continuam até hoje. Há também a questão da aposentadoria muito precoce, concedida sem o tempo necessário de contribuição. Outro caso: as aposentadorias dos trabalhadores rurais, concedidas corretamente no passado, que não têm a contrapartida da contribuição. Tudo isso produz uma queda no financiamento. CC: Se o rombo da Previdência é uma falsa questão, em quais pontos o debate deveria se centrar MD: A Previdência Social deveria ser vista de forma integrada à saúde e à assistência social. Portanto, os recursos arrecadados a título de contribuição sobre a folha de salários, assim como a contribuição para PIS e Cofins sobre o lucro, integram um único bloco de financiamento da Seguridade Social. Se considerássemos esse universo, o déficit seria anulado. E é a interpretação correta, à luz da Constituição. CC: Qual é o problema real no Brasil MD: Nosso problema é que 20% dessas contribuições são desviadas para o Orçamento Fiscal, por meio da Desvinculação de Receitas da União (DRU). A Constituição de 1988 foi feita para evitar os desvios do passado, que geravam déficits sistemáticos. Por mero decreto, até então, o presidente podia desviar os recursos. A partir de 1988, isso não pôde mais ser feito. Mas o que aconteceu As contribuições começaram a ser arrecadadas diretamente pela União e não foram totalmente repassadas para a Seguridade Social. E os desvios continuaram, por meio de emendas constitucionais, para que os responsáveis não fossem punidos. Aí vieram o Fundo Social de Emergência e a chamada DRU. Resultado: o dinheiro foi destinado ao pagamento da dívida interna. Agora, a Super- Receita vai consolidar isso: a União vai ser o único agente arrecadador de todas as contribuições de custeio da Seguridade Social. Até as contribuições sobre a folha de salários poderão ser desviadas para outro fim. CC: E como sair dessa armadilha MD: O que falta ao País é sinceridade, honestidade. O que deixou o Brasil assim, com déficit, foi o pagamento da dívida com juros altos, em proporções insuportáveis. É inacreditável que gastemos o equivalente a 100% do Orçamento com juros e apenas 30% com Seguridade Social. A França gasta 50%; a Alemanha, 40%. É claro que todos os países estão preocupados com o aumento do desemprego e da pobreza. Mas o fato, aqui, é que estamos nos desviando da realidade. Precisaríamos ter transparência e sinceridade. O Brasil precisa investir cada vez mais no social. A nossa Previdência ainda é frágil, porque a pobreza é muito grande. Os gastos com saúde são enormes. O debate está equivocado. O problema não é o suposto déficit da Previdência, mas como solucionar a nossa dívida. Como solucionar os encargos da dívida. LIÇÕES DO CHILE Uma contra-reforma Vinte e cinco anos depois de implementada, durante a ditadura do general Augusto Pinochet, a reforma da previdência chilena provou ser uma falácia, injusta socialmente e impraticável do ponto de vista contábil. Pelas mãos da atual presidente socialista, Michelle Bachelet, há uma reviravolta em curso. O sistema chileno previa a total substituição do Regime Geral da Previdência pelo setor privado, explica Paulo Mente, ex-presidente da Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Complementar (Abrapp) e diretor da Assistants Ltda. O fracasso do modelo pode ser conferido por números, diz o consultor. "A abrangência jamais esteve acima de 70% do total de 12 milhões de trabalhadores que fazem parte da População Economicamente Ativa (PEA)", afirma. A situação dos idosos é tão ou mais preocupante, pois recebem pela Pensão Assistencial Pública apenas o equivalente a 320 dólares ao mês, ou menos que dois salário mínimos brasileiros, compara o especialista. A previdência social foi privatizada, restando ao setor público zelar pela população de baixa renda. "O sistema chileno sempre esteve propenso a largar o caroço nas mãos do Estado. O conceito de seguro social totalmente privado é elitista. Parte de uma equação matemática, na qual só recebe quem paga", critica Mente. Além disso, pontua, "o sistema privado, mesmo com a característica de suplementar, não pode funcionar sem a vigilância normativa do governo". Bachelet promete consolidar um novo sistema até 2010. Já determinou um reajuste de 10% do patamar mínimo de 411 mil pensões do setor privado e da assistência pública. Também visa incorporar à rede 3 milhões de trabalhadores na ativa, hoje sem qualquer amparo. Por trás das iniciativas de Bachelet, diz Mente, está o fato de que, após a festa da privatização há 25 anos, o mercado foi se tornando mais estreito, com a previdência na mão de poucos grupos econômicos, cujos planos de aposentadoria exageram nas taxas de administração e apresentam rentabilidade aquém da aceitável.