O buraco é mais embaixo, governador
Meu grande amigo Saul Leblon saiu de férias. Foi visitar a República de San Marino (a menor do mundo, encravada nos Apeninos italianos) para ver in loco o que é, de verdade, um estado mínimo, não essa fajutaria que o neoliberalismo impingiu às nações emergentes. Agora voltou, afiado como nunca.Flávio Aguiar “A consciência de uma época progride aos saltos, freqüentemente é impulsionada por sínteses inesperadas que emprestam um olho mágico à sociedade permitindo-lhe enxergar melhor a própria história. Não por acaso Lênin dizia que política é economia concentrada. Às vezes uma simples frase ou o gesto simbólico de um líder deflagra o estalo de Vieira no imaginário coletivo. Desvenda-se a intrincada trama que os “especialistas” se esmeram em ocultar.Em março de 1930, Gandhi iniciou a Marcha do Sal atravessando 385 quilômetros ao sul da Índia em direção à costa. Por onde passava era saudado por legiões de camponeses que engrossavam as fileiras de sua comitiva. Ao chegar no oceano seguido por milhares de pessoas, Gandhi inclinou-se apanhou um pouco de sal depositado na areia e implodiu o monopólio inglês sobre a mercadoria. O monopólio britânico do comércio do sal determinava que a venda e produção da mercadoria por qualquer um, exceto o governo britânico, era crime. Com seu gesto de desobediência civil Gandhi evidenciou, para milhões de indianos, o absurdo que era continuar respeitando uma norma tão injusta.Acontecimentos simbólicos como esse desarticulam diferentes variáveis que sustentam a relação de forças de uma época ajudando a modificá-la. O cerne de desafios até então obscurecidos pela rede de dissimulações mantida graças a quantidades industriais de saliva, porrete e papel de imprensa, escancara-se expondo toda podridão do status quo.Quando a perplexidade e o luto pelas vítimas concluir seu ciclo, o buraco que se abriu nas obras do metrô em São Paulo poderá servir como um desses mirantes para enxergar melhor a “rede de aço invisível” que engessa os destinos do país, mencionada en passant pelo Presidente Lula no discurso de posse, dia 1 de janeiro.A lógica que emerge da cratera é tão assustadora e ardilosa quanto ela. Seu nome é Estado Mínimo. O sobrenome, para fins de licitação de obras públicas, é “turn key” (vire a chave), que no caso significa repassar à iniciativa privada todos os estágios de um de um acerto contratual baseado no tripé projeto/preço/prazo.No caso da Linha 4 do Metrô, o modelo foi imposto pelo principal financiador da obra, o indefectível Banco Mundial, a mais importante usina de difusão, treinamento e reeducação neoliberal em ação no planeta. Dinheiro na verdade não é a especialidade dessa instituição. O crédito oferecido pelo banco funciona apenas como isca para enredar países, governos, técnicos e burocracias públicas – bem como algumas ONGs – na obra jesuítica de satanizar o Estado, catequizar e remodelar os aparatos públicos, os corações e mentes das elites e tecnocracias nativas, adestrando-os nas excelências do mercado e da “neutra” sociedade civil.No Brasil o Banco Mundial implantou uma bem urdida hegemonia no modo de pensar de várias esferas do setor público. Dentro do Ipea, por exemplo –outrora uma usina de estudo e planejamento público, hoje reduzido, em grande parte, a uma caixa de ressonância dos mercados, formou-se uma tropa de choque de aplicados discípulos que funcionam como correia de transmissão do pensamento do Banco Mundial. São eles que tratam de tropicalizar os ditames da instituição empanturrando governo e colunistas obsequiosos com inesgotáveis pesquisas e estudos de recorte liberal-ortodoxo. Nesses papers volumosos apregoa-se, por exemplo, as virtudes da reforma da Previdência que pretende jogar os velhinhos, especialmente os do campo, ao relento, bem como o “focalismo” das políticas sociais, mantras que o Banco Mundial advoga como estratégias adequadas à economia recursos públicos, em substituição aos direitos universais do Estado de Bem-Estar Social.O “turn key” é uma tecnologia de ponta desse arsenal. Uma etapa superior do pritivatismo que condensa num único contrato todos os pressupostos que o neoliberalismo preconiza para a reforma do Estado na periferia do capitalismo. O repertório, como se sabe, teve (e tem) enorme receptividade entre o tucanato e os endinheirados nativos que não hesitaram em enfiá-lo goela abaixo dos brasileiros na década de 90, e ameaça prosseguir entre setores mais afoitos do petismo que vão nessa direção. As conseqüências são conhecidas. A saber, asfixia do setor público, estagnação econômica e inoperância do Estado, incapaz de assegurar serviços essenciais requeridos pela sociedade, tais como segurança, saneamento, educação de qualidade, atendimento condizente de saúde e garantia de velhice digna.Empreendimentos regidos pela lógica do “turn key” não são fiscalizados pelo poder público (leia-se, pela sociedade), mas pelos próprios vencedores da licitação. É obra tipo porteira fechada. O governo compra o pacote e o Estado abdica até da prerrogativa de gerir o delicado equilíbrio entre custo/lucro/segurança pública. Supõe-se nesses contratos que entre o interesse público e o recheio do próprio bolso as empreiteiras não hesitarão em perfilar ao lado do povo. Fala sério.É cedo para deslindar as alavancas obscuras que movimentaram tragicamente milhões de toneladas de terra na outrora pacata rua Capri, em São Paulo. Mas desde já causa certa indisposição a falta de pejo do governador tucano José Serra. Na tentativa de salvar a pele do seu palanque estadual para a Presidência, o tucano exime-se de qualquer responsabilidade reiterando justamente a lógica que pode estar na origem da tragédia: “A obra é de responsabilidade da construtora, inclusive a segurança dela (da obra)”, repete catatônico para a mídia obsequiosa.O buraco, governador, é mais embaixo. E justamente aí reside o problema.Tucanos dedicaram toda década de 90 (o PSDB governa São Paulo há 12 anos e governou o Brasil por 8) a depreciar a competência do planejamento público em nome da eficiência dos mercados. Privatizaram, pintaram e bordaram. Desidrataram até o osso a capacidade de investimento e de intervenção do Estado brasileiro na economia. Um correlato do “turn key” em escala federal foram as festejadas Agências Reguladoras. Encarregadas de fiscalizar serviços privatizados, acabaram satelitizadas sob a órbita de novos monopólios criados em substituição a estatais sufocadas pela interdição de investimentos, a proibição de contrair empréstimos e de reajustar tarifas, portanto, de se modernizarem para servir ao público. Deliberadamente engessadas assim, foram levadas ao paredão do descrédito público pelas mãos do tucanato. Exceto a Petrobrás – que por isso mesmo figura como um testemunho de eficiência incômoda para a turma de bico longo – todo investimento estatal no Brasil passou a ser contabilizado como “gasto” pela aritmética ortodoxa do reinado FHC, monitorada capilarmente pelo FMI e Banco Mundial. A prioridade era outra: desviar recursos orçamentários e contingenciar projetos para engordar o superávit primário e pagar os juros siderais da dívida pública. Graças a esse absurdo estratégico, a Eletrobrás, por exemplo –que deveria ser a Petrobrás do setor elétrico, tornou-se uma das principais geradoras de superávit primário no país, quando deveria ser uma geradora de energia. O resultado é que a economia tomou um apagão em 2001 e arrisca-se a levar outro no segundo mandato de Lula, caso o governo não mude radicalmente as regras do superávit em benefício dos investimentos das estatais e da União.Em 2003, pouco depois da posse, Lula fez uma declaração que gerou frisson entre neoliberais urbi et orbi. Irritado com o engodo das agências reguladoras, o recém-chegado Presidente desabafou: "O Brasil foi terceirizado”. A sensação era legítima. FHC, assessorado pelo FMI e o Banco Mundial, transformara o Estado numa espécie de ONG, uma organização na verdade não governamental à qual escapavam decisões estratégicas que afetam o presente e o futuro da sociedade. A lucidez do então recém-eleito não resistiu ao jogo pesado do primeiro mandato. O que figurava como uma distorção suicida aos olhos do Presidente transformou-se aos poucos em dogma fazendário. Acanhou-se de tal forma a percepção da responsabilidade coordenadora do Estado no núcleo econômico do governo que gerou um aleijão conceitual. O sacrifício virou virtude irradiando-se a lógica paralisante da ortodoxia por diferentes esferas públicas, num processo de colonização mental que contaminou a própria direção do PT e só foi interrompido com a queda do ministro da Fazenda Antonio Palocci, no final do primeiro mandato.O “turn key” é filho pródigo desse condomínio de interesses, renúncias, traições e espertezas que submete o Estado brasileiro há mais de duas décadas à hegemonia absoluta dos mercados. Não por acaso o período coincide com a estagnação do crescimento. O buraco na rua Capri pode ter várias explicações geológicas. Mas a base ideológica do desastre remete a esse conluio de forças que satanizaram o planejamento público no país, promoveram a corrosão dos valores compartilhados de bem-estar coletivo e descartaram a lógica da solidariedade taxando-os como anacronismos incompatíveis com a nova eficiência requerida pelos circuitos globalizados da riqueza e do poder. Quem liderou isso no Brasil com requintes de cinismo e pouco caso pelos adversários “caipiras” e “jurássicos” não foi o consórcio da Via Amarela, senhor governador. Foi o tucanato, ninho em que o senhor sempre se abrigou.”Flávio Aguiar é editor-chefe da Carta Maior.