Europa atrai empresas com guerra fiscal
Josette Goulart e Marta WatanabeEm processo de internacionalização, seja por meio de exportações ou investimentos diretos, as companhias brasileiras começaram a aproveitar a verdadeira guerra fiscal travada entre os governos europeus na disputa pela instalação de empresas que não são meras subsidiárias, mas sim holdings e tradings com papel importante no organograma do grupo. Os locais estrategicamente escolhidos reúnem condições favoráveis de logística e infra-estrutura, mas também vantagens tributárias capazes de neutralizar ao menos parte do Imposto de Renda (IR) que, segundo a legislação brasileira, deve ser pago também sobre todos os lucros do exterior, mesmo que ainda não tenham sido distribuídos. Os casos de empresas brasileiras com um pé no velho continente têm proliferado tanto nos últimos anos a ponto de hoje algumas companhias com capital de origem brasileira serem controladas por européias. A Gerdau, por exemplo, tem como principal acionista a Stichting Gerdau Johannpeter, que fica na Holanda. Grupos estrangeiros, quando fazem suas aquisições no Brasil, também montam estruturas naquele país para otimizar tributos. A espanhola Telefónica e a portuguesa Portugal Telecom usaram uma holding holandesa, a Brasilcel, para adquirir a Vivo. A guerra fiscal está tornando a Europa tão atrativa que vem sistematicamente desbancando tradicionais paraísos fiscais. No ano passado, estes paraísos perderam uma das empresas da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), que fez uma de suas tradings mudar completamente de paisagem. Migrou da caribenha Bahamas para a gelada Suíça uma empresa que tem a tarefa de vender minérios e metais. Os atrativos na Europa são muitos. Holanda e Bélgica reduziram impostos e aumentaram isenções fiscais na distribuição de dividendos com regras que começaram a valer em 2007. Mas mesmo países que não mudaram sua legislação começam a negociar imposto de renda menor diretamente com as companhias que se instalam por lá. Foi o que aconteceu com a Vale. A companhia de mineração fez uma importante alteração em sua estrutura societária ao migrar, em 2006, uma empresa sediada em um tradicional paraíso fiscal caribenho para a Suíça. A antiga Itabira Rio Doce (Itaco), de Nassau, Bahamas, deu lugar à CVRD International, em St-Prex. Com controle ou participação em várias empresas do grupo dedicadas à exploração mineral, além de ferro ligas, coque, carvão e manganês, a nova empresa suíça foi montada para atuar como trading na venda de minérios e metais. Estão sob o guarda-chuva da CVRD International companhias de exploração mineral em Moçambique, África do Sul, Argentina, Venezuela, Austrália e Mongólia, além de empresas chinesas que exploram coque, carvão e ferro-ligas na França e Noruega, entre outros. Com vantagens logísticas por situar-se na Europa, a Suíça tem atraído empresas brasileiras também em função dos chamados "tax rulings", uma espécie de regime especial. A Vale, por exemplo, conseguiu um ruling pelo qual sua tributação sobre a renda cai para menos de 5%. Na Suíça, o equivalente ao imposto de renda brasileiro tem alíquotas que vão de 14% a 30%. A variação acontece porque a tributação suíça sobre renda é feita não só pela federação como também pelo cantão e pelo município. Em Nassau, a Itaco estava sujeita à tributação de 0% sobre a renda, tanto sobre os ganhos internos como sobre os off-shore. "Os rulings permitem grande flexibilidade porque, por meio deles, o fisco suíço pode conceder reduções de carga tributária além das previstas em lei", diz o consultor de tributação internacional Luiz Frederico Battendieri, do escritório Braga & Marafon. Ele explica que os rulings são negociados caso a caso. "A empresa a se estabelecer na Suíça, porém, precisa ter substância econômica, não pode ser uma caixa postal", lembra. Basicamente, o ruling estabelece as regras que o contribuinte deve obedecer para obter tratamento tributário diferenciado. A redução de impostos varia conforme o número de empregos a serem gerados, o investimento e o porte da empresa. Subsidiária integral da Vale do Rio Doce, a CVRD International foi estabelecida na Suíça como uma trading, com cerca de 30 funcionários. A única desvantagem da Suíça, diz Battendieri, seria a falta de tratado internacional para evitar dupla tributação com o Brasil. "Mas isso pode ser contornado. A empresa suíça pode estar atrelada a uma holding localizada em um terceiro país que tenha acordo assinado tanto com o Brasil como com a Suíça", exemplifica o consultor. "A flexibilidade do tax ruling é tão grande que permite também a negociação da tributação do fisco suíço sobre os dividendos da empresa." Procurada, a Vale informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que "a CVRD decidiu reunir estruturas que estavam espalhadas em vários países. A companhia analisou vários locais e a Suíça foi escolhida por oferecer as melhores condições de infra-estrutura e localização." Outro grupo que tem empresas estrategicamente estabelecidas na Europa é a Gerdau. Procurada, a companhia não quis se manifestar sobre o assunto, mas a empresa, cuja controladora é uma holding holandesa, vai se beneficiar diretamente das mudanças na legislação tributária do país. Desde 1º de janeiro a Holanda passou a isentar lucros, distribuição de dividendos e ainda ganhos de capital das subsidiárias conectadas à holding ou trading holandesa. A participação na subsidiária terá que ser de 5%. A isenção passa a valer também para as subsidiárias localizadas em paraíso fiscal, cujos lucros antes eram tributados em 29% na Holanda. A advogada Juliana Dantas, do escritório holandês Loyens & Loeff, explica que as novas regras exigem que estas subsidiárias tenham mais da metade dos ativos negociáveis, ou seja, não podem ser especulativos, como empréstimos entre empresas do mesmo grupo. Se tal controlada for passiva, a isenção se aplica caso o país de origem tribute em pelo menos 10% a empresa. Outra alteração foi a redução da alíquota de imposto de renda de 29% para 25,5% e a queda de dez pontos percentuais do IR sobre distribuição de dividendos, agora em 15%. Dentro da Comunidade Européia a alíquota é 0%. Juliana Dantas explica ainda que há um benefício fiscal em injetar caixa que esteja sobrando no Brasil na subsidiária holandesa. Isso pode ser feito por meio dos chamados "interest box", a serem aprovados pela Europa, ou também por um empréstimo híbrido. O juro sobre empréstimo híbrido é isento na Holanda. No caso do interest box o imposto sobre o juro na Holanda, de 5%, é eliminado via crédito dos 15% retidos na fonte no Brasil. A vantagem competitiva da Holanda também se vale ao acordo de bitributação com o Brasil. Isso acontece porque a legislação brasileira exige a tributação de lucro no exterior, com exceção daqueles países com quem o Brasil tem tratado. Esses países são os mais procurados, mas acabam sendo usados como ponte para triangulações com outros países atrativos. Assim, uma empresa brasileira abre uma holding na Holanda e debaixo dessa holding coloca outras empresas espalhadas pela Europa, paraísos fiscais e até mesmo EUA. Como a Holanda isenta o pagamento de lucro no exterior auferido pelas subsidiárias, a holding holandesa não paga nada. Esse imposto também não chegará ao Brasil por causa do tratado. Essas triangulações são mais vantajosas quanto mais tratados o país escolhido como porta de entrada tiver. A Bélgica é um destes países atrativos pela quantidade de tratados para evitar bitributação que possui. São cerca de 80. Além disso, o país tem alterado sua legislação para se tornar cada vez mais atraente para investimentos. Desde o início do ano oferece isenção de imposto de renda na fonte sobre dividendos para acionistas de países com tratados com a Bélgica. Para aproveitar o benefício, a empresa precisa ter participação mínima de 15% na empresa belga. Também é necessário o mínimo de um ano como acionista. O consultor Battendieri lembra que sobre essa isenção de IR na fonte não se aplica a cláusula de LOB ("limitation of benefits"), ou seja, não se olha quem é o beneficiário do dividendo. Muitos países restringem a redução ou isenção de seu IR na fonte caso o beneficiário efetivo do dividendo esteja em paraíso fiscal, por exemplo. A isenção sobre os dividendos não é, porém, uma medida isolada. Ela somente dá continuidade à política posta em prática nos últimos anos de redução tributária voltada principalmente para a instalação de holdings. Num instrumento semelhante ao mecanismo brasileiro da Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) sobre capital próprio, a Bélgica também permite a dedução de sua taxa de juros no cálculo do IR. O benefício existe desde 2006. A taxa de juros é aplicada sobre o patrimônio antes do cálculo do tributo. O governo belga permite ainda a compensação de créditos de imposto de renda de outros países e não tributa os ganhos de capital. Estas estruturas internacionais que envolvem emaranhados de coligadas e controladas precisam ser muito bem estudadas pelas empresas que querem fazer planejamento tributário internacional. A advogada Andréa Bazzo, do escritório Mattos Filho, diz que as estruturas são caras e só valem à pena para companhias com muitos negócios no exterior. Mas as vantagens podem ser muitas. Os advogados Celso De Paula da Costa e Clóvis Panzarini Filho, do escritório Machado, Meyer, dizem que essas estruturas possibilitam captações de recursos a custos mais atrativos e os investimentos no exterior ficam mais fáceis e baratos, além da isenção fiscal dentro do próprio mercado europeu. Eles lembram que, além da Holanda, Áustria e Espanha são os países mais procurados por brasileiros. Fora da Europa, há estruturas ainda vantajosas em paraísos fiscais e em Delaware, nos EUA. Os países na Europa, entretanto, têm exigido uma contrapartida das empresas como a criação de empregos, por exemplo. O advogado Luiz Felipe Ferraz, do Demarest e Almeida, diz que também é importante definir o objetivo de se ter uma controlada no exterior. Se for exportar, o ideal é fazer uma trading que recebe os produtos do Brasil e reexporta com maior facilidade. É possível até mesmo fazer planejamento com as regras de preço de transferência. Para as empresas que fazem investimentos, o ideal é estabelecer uma holding.