Ganhando a cena, perdendo a vida

12 Fev 2007
SCLIAR OPINAGanhando a cena, perdendo a vidaNão seria o caso de estabelecer um teto para os prêmios da loteria, teto esse que,ultrapassado, geraria verbas para instituições de ajuda?Moacyr ScliarSe houve um nome que condicionou destino foi o do Rennê Senna: em 2005, ele ganhouR$ 52milhões na Mega Sena. Mas o seu próprio nome deveria ter-lhe servido de advertênciaparao que aconteceria a seguir.Rennê Senna era um homem pobre. Inválido - tivera ambas as pernas amputadas pordiabetes, provavelmente mal controlado - sobrevivia da venda de confeitos em estradas.Portanto, esse homem precisava, mesmo, de uma ajuda, de uma grana extra. Quanto? Quequantia seria necessária para que Rennê pudesse abrir uma lojinha, morar numa casadecente, ter cuidados de saúde? Cem mil, duzentos mil? Um milhão? Digamos que fosseR$ 1milhão: o prêmio era cinqüenta e duas vezes maior do que isto. O resultado todo mundosabe. Rennê passou a viver numa enorme mansão, casou-se com uma mulher muito mais jovemdo que ele. Teve de se rodear de seguranças, e os seguranças rodeavam também a mulher,com resultados previsíveis. E, por fim, Rennê Senna acabou sendo assassinado. A MegaSena representou para ele uma megamaldição.Há uma lição a extrair daí. A quantia que Rennê Senna ganhou é, pelos padrõesbrasileiros, grotesca. Mais do que isso, resulta das apostas de milhões de pessoas. Oque temos aí, portanto, é simplesmente uma brutal concentração de renda. Sim, essa é aregra do capitalismo, mas nele existe pelo menos uma lógica: o enriquecimentosupostamente é o prêmio da criatividade, do espírito de iniciativa, do trabalhoduro. Nocaso da loteria, é jogo - ironicamente, num país em que o jogo é proibido. Mas o jogo évisto como uma das poucas formas de ascensão social no Brasil. Daí as filas que seformam nas lotéricas quando a Mega Sena está acumulada. Nada de mal nisso, dirá alguém:afinal, as pessoas têm direito a sonhar. Certo. O problema começa quando o sonho serealiza. Não basta ganhar dinheiro, é preciso saber lidar com ele. Instituiçõesfilantrópicas e governos estrangeiros freqüentemente dão ajuda a países pobres, apenaspara descobrir que a grana acaba nos bolsos de governantes corruptos. Não há umaestrutura sadia que encaminhe esse dinheiro para quem precisa.Voltando à loteria: não seria o caso de racionalizar um pouco essa extravagância,poupando gente como Rennê Senna? Não seria o caso de estabelecer um teto para o prêmio,teto esse que, ultrapassado, geraria verbas para instituições de ajuda? Claro, oimpostojá faz isso. Mas o imposto não dá visibilidade ao encaminhamento do auxílio. E avisibilidade aí tem uma função educativa, mostrando que solidariedade é coisaimportante.Essa era uma pergunta que a gente poderia fazer ao Rennê Senna. Infelizmente ele nãoestá mais aqui para responder.