Perseguição do Fisco americano a diplomatas brasileiros
Veto à compra de imóveis. Perseguição do Fisco americano a diplomatas brasileiros. Antiamericanismo no Itamaraty. Por que o Brasil e os Estados Unidos estão brigando por tão pouco e no que vai acabar tudo isso Por Milton Gamez e Rodrigo Rangel Houve um tempo em que o Itamaraty era considerado uma espécie de templo das boas maneiras. Nossos cultos embaixadores, acostumados aos salões do gran monde e seus vinhos e charutos maravilhosos, jamais se envolviam em brigas e bate-bocas em público. Isso mudou. Ao menos com os Estados Unidos. Tradicionalmente, nas negociações do País com essa potência, a sutileza das palavras e o peso das entrelinhas sempre pautaram as declarações oficiais – por mais ferrenhas que fossem as discussões entre quatro paredes. Nos últimos dias, Brasil e Estados Unidos envolveram-se numa queda-de-braço por questões, por assim dizer, comezinhas. Até o endereço de embaixadas e casas de missões diplomáticas entrarou na querela. O Fisco americano também resolveu perseguir funcionários diplomáticos brasileiros. Para completar, algumas das maiores autoridades vinculadas ao Itamaraty entraram num bate-boca banal sobre ser ou não ser antiamericanista. AMORIM Acusado de artista da dissimulação pelo ex-chanceler Lampreia O assunto número 1 da pauta de conflito: as casas. Nesse pormenor, a disputa beira o cômico. Os Estados Unidos, impedidos de vender imóveis de seu serviço diplomático no Brasil, resolveram retaliar e vetaram a compra de uma sede pelo Itamaraty em Nova York, no final do ano passado. Na origem da picuinha, uma questão tributária. Os Estados Unidos não recolhem INSS dos funcionários de seus postos diplomáticos no Brasil. Por isso, a embaixada americana figura como inadimplente nas listas de devedores do governo brasileiro. E o que isso significa para os americanos? Na prática, por estarem em débito com o governo, eles não podem se desfazer de imóveis. Isso atrapalha um antigo plano: a venda de três prédios de apartamentos situados na Asa Sul de Brasília e do portentoso imóvel onde funciona o consulado no Rio de Janeiro – um verdadeiro elefante branco. Quando a capital do Brasil era o Rio de Janeiro, o prédio abrigou a embaixada. Depois, o posto foi reduzido a consulado – e o imóvel ficou subutilizado. Os americanos querem se desfazer do prédio. Impedidos, deram o troco. O Departamento de Estado pôs entraves a projetos da diplomacia brasileira em território americano. O último deles diz respeito à aquisição de um conjunto de salas comerciais em Nova York. Os escritórios sediariam a chancelaria do Brasil junto à Organização das Nações Unidas, a ONU. Brasília chegou a liberar o dinheiro para a compra. Alguns milhões de dólares. Só que, antes de fechar o negócio, era preciso obter autorização do governo de George W. Bush – e essa autorização nunca veio, numa clara retaliação à postura do governo brasileiro ante as diatribes da embaixada americana no Brasil. Como o negócio não saiu do papel, o Itamaraty foi obrigado a devolver os recursos aos cofres do Tesouro Nacional. Hoje, a missão junto à ONU funciona num imóvel alugado, um espaço pequeno para abrigar os 29 funcionários e o embaixador Ronaldo Sardenberg. O espaço, aliás, é menor ainda se levado em conta o dinheiro que o governo brasileiro desembolsa pagando aluguel todo mês. “O que a gente já gastou já dava para ter comprado o prédio”, diz uma fonte graduada do Itamaraty. Para piorar as coisas, o Fisco americano fechou o cerco aos funcionários das representações diplomáticas do Brasil em Washington e em outras cidades daquele país. O coletor de impostos do tio Sam quer receber mais de US$ 2 milhões de 105 auxiliares administrativos até o dia 20 de fevereiro – quem não pagar poderá ser indiciado por fraude fiscal, um crime que prevê penas de até cinco anos de prisão e multas de até US$ 500 mil. Os brasileiros contestam a cobrança e querem ganhar tempo para discuti-la com a receita americana. Nessa briga, contudo, o Brasil não está sozinho: a ação faz parte de um plano para cobrar impostos de funcionários de mais de 200 países. Enquanto não resolve as picuinhas com os Estados Unidos, o Itamaraty brindou o respeitável público com uma tola discussão sobre uma certa doutrina anti-Estados Unidos do governo Lula. Isso, às vésperas da visita do presidente Bush, prevista para 8 de março. O ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, rechaçou a existência dessa doutrina, evocando as crescentes relações comerciais entre os dois países e, claro, as mulheres traidoras e traídas do impagável autor de A vida como ela é. “Como é que uma postura antiamericana pode gerar um interesse tão grande sobre o Brasil? Seria pensar que os EUA são mulheres das peças de Nelson Rodrigues. E obviamente não é o caso”, afirmou em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo. Ato contínuo, seu antecessor, o ex-chanceler Luiz Felipe Lampreia, acusou-o de dissimular o viés anti-Estados Unidos do Itamaraty: “O que se viu foi novamente a prática da arte da dissimulação, típica do ministro.” As trocas de sopapos não vão alterar em nada as grandes questões bilaterais, como a tentativa de aliança em torno do etanol, em plena construção. Mas fica a pergunta: onde foram parar as luvas de pelica?