Outro capitalismo, com outro Estado

15 Mar 2007
Leo Pinheiro/Valor Sicsú: Com o PAC tem-se uma verdadeira política fiscal, que agora é preciso coordenar com a monetária e a cambial "Ser pós-keynesiano é compreender que o capitalismo pode atender às necessidades materiais e às fantasias espirituais que formam a base para se alcançar a felicidade de todos. Mas para isso é necessário reformar o capitalismo, regulá-lo e manter o Estado permanentemente a serviço da sociedade, objetivando sempre o melhor, objetivando mais que o máximo." A definição é de João Sicsú, professor-doutor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que, atendendo a um pedido do Valor, consentiu em trazer para a linguagem comum a essência do que significa ser pós-keynesiano. Para quem quiser alcançar maiores profundidades no conhecimento de conceitos, teoria e propostas de aplicação prática, ao caso brasileiro, que estruturam o pensamento daqueles que se reservam a qualificação de únicos intérpretes verdadeiros de Keynes, recomenda-se a leitura de "Emprego, Juros e Câmbio - Finanças Globais e Desemprego" Será variado o proveito a extrair dessa coleção de ensaios que sintetizam a pesquisa realizada por Sicsú nos últimos três anos, mais o resultado de alguns de seus trabalhos anteriores. Acompanha-se o autor pelos escaninhos da visão de mundo pós-keynesiana, para compreendê-la sobretudo em contraposição às posições dos chamados novos-keynesianos, corrente de presença hoje dominante. Ao mesmo tempo, percorrem-se questões da atualidade econômica brasileira, no contexto da globalização financeira exacerbada, com lentes de praticidade que Keynes também usaria: ele era um teórico, mas cultivava dedicadamente o interesse por solucionar problemas correntes. O retrato que se tem, no livro, do momento brasileiro, em matéria de políticas aplicadas e seus resultados, sejam do tipo expansionista (pelo pleno emprego, ainda que idealmente), seja do tipo defensivo (que pretendem reduzir a sensibilidade do país a crises cambiais, por exemplo) tende para o sombrio. Não é um perfil desesperançado, porém, apesar da acidez da crítica. Começando, como o livro, pela oposição entre Keynes e os novos-keynesianos, tenha-se em mente que, para pós-keynesianos, o governo deve ter papel ativo e permanente no estímulo à ação de fatores determinantes da demanda efetiva. Não havendo essa intervenção, a preferência dos agentes econômicos poderá dirigir-se para a liquidez, com efeitos depressores sobre as decisões privadas de gastos. O desemprego teria aí sua causa fundamental. Novos-keynesianos, hoje infiltrados na corrente dominante e nela influentes, nada têm de keynesianos, na verdade, como Sicsú trata de demonstrar, examinando pormenores do quadro de diferenças entre as duas vertentes teóricas. O nome do pai da macroeconomia teria sido adotado no rótulo dos "novos" apenas porque existe correspondência com o pensamento de Keynes na identificação do problema (a ocorrência de flutuações econômicos e desemprego involuntário em determinadas circunstâncias), e não com seu diagnóstico e solução. Eles preferem propor, então, como políticas de pleno emprego para o longo prazo, a utilização de mecanismos que quebrem a rigidez de preços e salários reais, como, por exemplo, a abertura comercial ao exterior e câmbio perfeitamente flexível. Políticas econômicas seriam, na opinião dos "novos", apenas soluções provisórias para problemas cujas causas fundamentais não estariam sendo atacadas. Novos-keynesianos, então, olham quase só para o lado da oferta e em sua agenda de pesquisa ocupam-se de uma única disciplina, a microeconomia - mantendo-se distanciados da macroeconomia, edifício teórico erguido por Keynes. É bom lembrar, a propósito, que "planejamento e, conseqüentemente, políticas econômicas, não é, para Keynes, forma de intervenção que significa controle da economia, fim do princípio da liberdade ou imposição de decisões individuais", diz Sicsú quando comenta a importância de políticas monetárias eficientes, espécie de medula espinhal das práticas keynesianas. Trata-se, sim, e nada mais que isso, de "orientar a sociedade e direcionar (ou induzir) decisões privadas". É um planejamento indicativo, correia de transmissão pela qual transitam sinais que os formuladores de políticas dirigem aos agentes econômicos. "Quanto mais nítidos forem os sinais de política, mais seguros e confiantes estarão os agentes para decidir; assim, maior será o estímulo privado para agir e menor será a intensidade e o tempo de utilização dos instrumentos monetários acionados pelas autoridades", explica Sicsú. Será uma semeadura: [As autoridades] "podem sinalizar aos agentes o provável contexto futuro porque são capazes de construir esse futuro, dado o volume de recursos que mobilizam e a notável influência sobre certas variáveis que possuem". [Os sinais emitidos] "podem induzir a formação de expectativas auto-realizáveis: os agentes acreditam que determinado contexto ocorrerá; então, tomam decisões consistentes com suas expectativas, que terminam por ser validadas pela realidade, dado que os agentes agiram para construir aquele cenário esperado". Sinalizar é indispensável. Nesse sentido, o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) tem significação positiva. "É uma sinalização tênue, mas que é importante por ser uma possibilidade de inflexão na trajetória que o governo adotou nos últimos quatro anos", diz Sicsú. "Agora se está dizendo que, para crescer, deve haver investimento público, para induzir investimento privado, e isso deve resultar em crescimento". Pode (pode) ter ficado para trás, então, "o discurso pró-reforma do Banco Central, reforma da Previdência etc.", postos como condições para o crescimento que depois viria. "Pode ter havido uma mudança na concepção da relação entre estado e economia". Sicsú acredita que ainda há tempo para este governo colher frutos dessa possível virada pró-crescimento. Mas será indispensável que, além da sinalização, haja coordenação das políticas monetária e cambial (menos juros já e mais câmbio logo adiante, para a exportação de manufaturados) com essa verdadeira política fiscal que Sicsú considera de fato haver agora - não mais uma simples administração da dívida pública com o objetivo de reduzir sua proporção em relação ao PIB. E essencial será também a competência para executar, acionando a máquina de governo, tirando projetos do papel - capacidades que, observa Sicsú, faltam a este governo, experimentado apenas nas artes de encolher a economia. Para conviver com as incertezas da globalização financeira, o controle de capitais será outra essencialidade, mesmo porque a blindagem da economia brasileira, diz Sicsú, é hoje mais impressão do que realidade. A providência seria útil também em associação com uma revisão do sistema tributário, que o torne mais justo (para impedir a fuga de ativos eventualmente mais taxados). Sicsú acredita que será possível fazer uma transição negociada para outros modos de gestão da economia, mesmo sabendo, como dizia Keynes, que a verdadeira dificuldade não está em aceitar idéias novas, mas em escapar das velhas idéias. "Emprego, Juros e Câmbio" - João Sicsú. Campus/Elsevier. 350 págs., R$ 65