João Sicsú aponta continuísmo de Lula e mostra males da política econômica
Economista da UFRJ procura desmontar tese de que primeiro mandato de Lula buscou transição para outro modelo. Quando analisa a liberalização de capitais, Sicsú avalia ainda que Lula aprofunda orientações econômicas de seus antecessores.Gilberto Maringoni – Carta MaiorSÃO PAULO – Um dos mais consistentes críticos da opção continuísta do governo Lula, no terreno da economia, acaba de lançar seus argumentos em livro. Trata-se de “Emprego, juros e câmbio – Finanças globais e desemprego” (Editora Campus – Elsevier, 350 páginas, R$ 65), de João Sicsú, professor de economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. O volume, na verdade, poderia ser dois. Nas partes iniciais, teóricas, Sicsú polemiza com os defensores da ortodoxia, abrigados, a partir dos anos 1980, sob o manto do novo-keynesianismo. Este pouco tem a ver com os postulados originais de John Maynard Keynes (1883-1946). Sicsú foca especialmente nos temas da geração de postos de trabalho e do câmbio, ancorando seus argumentos no clássico “Teoria geral do emprego, do juro e da moeda”, escrito pelo economista inglês em 1936. Keynes é, possivelmente, o economista mais influente do século XX. Sem ser de esquerda, foi o principal defensor do papel do Estado como planejador e indutor da economia. Efeito colateralO professor da UFRJ recapitula também as grandes diretrizes utilizadas no debate sobre as causas da inflação. “Não há dúvida de que uma política antiinflacionária que ataca os sintomas, como a elevação da taxa de juros, pode ser bem sucedida. Entretanto, ela provoca um efeito colateral nefasto: deprime o objeto que possui os sintomas, ou seja, deprime a economia, causando desemprego e redução das taxas de crescimento do produto”, escreve ele.Keynesiano assumido, Sicsú argumenta com autoridade na polêmica. Mas o leitor leigo, se quiser, pode deixar essas primeiras partes do livro, mais áridas, para mais tarde. Pode ir direto às páginas mais quentes, nas quais o economista carioca desmonta os pretextos vazios utilizados pelo governo Lula para manter acesa a chama do conservadorismo econômico, formalmente derrotado nas urnas em 2002. É quase outro livro. Quando analisa a crescente liberalização dos controles de capitais na economia brasileira, ocorridas desde o final dos anos 1980 até 2006, não há como deixar de perceber que Lula aplica e aprofunda as orientações econômicas de seus antecessores Fernando Collor (1990-1992) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2003). Não é discurso de palanque. Sicsú agrega à sua argumentação vários documentos oficiais, atestando suas conclusões. “O objetivo maior dessas normas cambiais brasileiras (adotadas até agora) foi consolidar o estágio atual e aprofundá-lo”. Sua reflexão é certeira. “O PT aderiu a uma antiga idéia do PSDB: o modelo econômico deve ser permanente, o que as eleições presidenciais disputam são apenas competências para geri-lo”, mostra o autor. Liberalismo e independência do BCAssim, quando o governo Lula, em agosto de 2006, dilatou o prazo de cobertura cambial para as exportações, os exportadores receberam um prazo maior para trazerem ao país parte das receitas do que vendem ao exterior. Isso faz com que um aumento de exportações não resulte necessariamente entrada de mais dólares no país. O exportador deixa lá fora m dinheiro que, em situações de crise, poderia ser vital para a economia. O passo seguinte é acabar com toda a cobertura cambial, o que representa a total liberalização da conta de capitais. “A liberalização sempre foi defendida pelo sistema financeiro (e seus aliados), já que a liberdade de movimentos de capitais sem custos é sinônimo de liquidez. (...) A novidade no debate brasileiro é que o setor produtivo exportador se uniu ao sistema financeiro”.Sicsú evidencia os perigos para a economia brasileira dessas medidas e do coroamento político que se pretende para garanti-las: a independência do Banco Central. A certa altura, o economista pergunta o que esta proposta esconde. Segundo ele, as “mudanças” patrocinadas pelo governo petista não são apenas continuístas, nem lentas, e muito menos cautelosas. “Foram mudanças profundas, que podem impedir que mudanças reais venham a ocorrer”.No caso do BC, Sicsú compara: “Há alguém que avalie que o Ministério da Saúde ou o das Minas e Energia” pode ter autonomia? “O mais relevante nesse debate é definir se o Banco Central deve buscar alcançar uma meta quantitativa de inflação ou deve também tomar decisões balizadas pela necessidade de se reduzir as taxas de desemprego. O que se pretende definir na proposta de autonomia é que as variações da taxa de juros devem ser balizadas somente pelo objetivo de conter a inflação, sem levar em conta qualquer outra variável real da economia”. Para Sicsú, o Banco Central deve ter entre seus objetivos a busca do pleno emprego e do crescimento econômico. A taxa de juros deve ser um entre vários mecanismos para se controlar a inflação.O economista atenta para uma das ironias do continuísmo petista: o efeito nefasto das taxas de juros na vida das pessoas – com suas conseqüências como falências e desemprego – é que ajudaram a eleger Lula em 2002, quando este garantia poder controlar a inflação sem custos sociais. “É lamentável, mas o presidente Lula manteve a mesma política que ajudou a derrotar seu adversário em 2002”.Palocci confirmaNada do que Sicsú fala sobre a continuidade é novidade na crônica política do governo Lula. O recente livro do ex-ministro da Fazenda, Antonio Palocci – “Sobre formigas e cigarras” – apenas confirma, na dança dos personagens, o que as medidas econômicas expressam. De acordo com matéria publicada sobre a obra no jornal Valor, de 13 de março último, a continuidade era tanta que"Chegamos mesmo a pensar na permanência de Armínio Fraga por alguns meses", conta Palocci. Fraga se encontraria a portas fechadas com Lula por duas vezes em 2002. Após desistir dessa opção, Lula optou por Henrique Meirelles para a presidência do Banco Central, em 10 de dezembro de 2002. Este último quis saber do recém-eleito presidente se teria autonomia para trabalhar. Lula então respondeu: "Você vai ter toda autonomia para trabalhar. Nós confiamos em você”. Ao que parece, a autonomia operacional do BC tornou-se uma cláusula pétrea do mandato de Meirelles à frente da instituição. Plano BNo início deste segundo mandato de Lula, ninguém mais fala num possível “plano B” para a economia, com a materialização de pelo menos algumas das promessas tradicionais do PT. “É um caminho sem volta”, lamenta Sicsú. “Os mercados são exigentes e insaciáveis em relação aos governos”. Para ele, “O resultado da equação dos modelos econômicos de FHC e de Lula é perverso, muito perverso, pois o governo tornou-se impotente” diante dos mercados.O livro não contém artigos avaliando as possíveis conseqüências do Plano de Aceleração do Desenvolvimento (PAC), lançado em janeiro. Apesar do grande aparato de mídia que marcou seu anúncio e da possibilidade positiva de ele representar uma mudança na orientação pró-financista do primeiro governo Lula, seus limites estão dados. Eles são a rigidez das políticas monetária e cambial, que impedem o país de crescer. Para analisar as conseqüências disso, o livro de João Sicsú é um excelente subsídio.