Governo tem projeto para simplificar tributação

20 Abr 2007
Receita caseira Disse Cervantes que "o melhor molho do mundo é a fome". E a crise é o azeite das reformas. A primeira parte do que acabo de reproduzir é verdade. A segunda, nem sempre. Os chineses, por exemplo, completam uma reforma atrás da outra sem precisar de crises, pois aproveitam o sucesso de uma como aperitivo para a seguinte. No reino do meio, comer e reformar é questão de começar. A China fez duas reformas tributárias importantes nos últimos 15 anos. Ainda na década de 1990, introduziu um IVA no lugar de uma velha espécie de "tax farming", pela qual cada região entregava ao poder central um valor predeterminado. E, no mês passado, unificou o imposto de renda sobre todos os tipos de empresa, domésticas ou estrangeiras, pequenas ou grandes. No final de 2006, 594 mil firmas com participação de capital externo pagaram US$ 795 bilhões de impostos (que representavam 21% da receita tributária do país). Até então, gozavam de um regime preferencial, porque a alíquota sobre seus lucros era 15%, mas 33% para as firmas domésticas. As alíquotas foram unificadas em 25%. O governo chinês calcula que a nova alíquota é adequada, porque menor do que 28,6%, média das alíquotas de imposto de renda para a pessoa jurídica em 159 países. Reforma tributária - na China como em qualquer outro lugar - passa por cima de interesses. É por isso que, embora em discussão desde 2004, a última reforma só foi aprovada em março de 2007. No Brasil, Bernard Appy, secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, anunciou que, até agosto, o governo enviará ao Congresso um projeto de reforma tributária simplificadora. Já era tempo. As principais distorções do sistema brasileiro estão relacionadas aos tributos indiretos sobre bens e serviços. Incidências cumulativas convivem com uma multiplicidade de legislações, competências tributárias, alíquotas e bases de cálculo. Segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, existem 62 tributos no Brasil e 3.200 normas tributárias - incluindo leis, medidas provisórias, decretos, portarias e instruções. Aos municípios, cabe o ISS. Aqui, Paulo Avarte e Enlinson Mattos, da FGV de São Paulo, advertem que menos de 3% dos municípios brasileiros são eficientes na cobrança de impostos (95 municípios numa amostra de 3.359). Como a maioria dos municípios sobrevive à custa de transferências, uma reforma poderia distribuir o peso da carga tributária de forma mais justa. Governo tem projeto para simplificar tributaçãoAos Estados, cabe o ICMS, com grave distorção advinda do sistema misto para partilha do imposto. Ao mesmo tempo, a guerra fiscal onera o conjunto dos Estados, sem custo para aquele que concede o benefício. Além disso, é difícil desonerar as exportações, porque o Estado do exportador reluta em aproveitar os créditos (sobre insumos) acumulados em outros entes da federação. A desoneração dos investimentos também se complica, porque o Estado que recebe os investimentos arca com o ônus do ICMS pago a outros. À União cabem PIS, Cofins, IPI e Cide-combustíveis. Regimes cumulativos e não-cumulativos se sobrepõem, com prejuízo da neutralidade e da eficiência. O custo alto de cumprimento das obrigações tributárias estimula a sonegação e a elisão fiscal. A complexidade tributária entrava o crescimento. O Ministério da Fazenda sabe disso. A prova é que colocou na mesa uma receita para substituir todos os tributos sobre bens e serviços por dois impostos uniformes sobre o valor adicionado: um estadual e um federal. Os Estados teriam autonomia na fixação de alíquotas segundo parâmetros definidos nacionalmente. Nas operações interestaduais, o imposto seria cobrado no Estado de origem, mas apropriado pelo Estado de destino. Se der certo, o novo sistema poderá simplificar e diminuir os custos das obrigações tributárias. E assim reduzir a informalidade e ampliar a base de contribuintes; desonerar investimentos produtivos e eliminar as distorções do comércio exterior. A oportunidade de levar a reforma à frente aumentou com a nota fiscal eletrônica e os cadastros sincronizados. A nova base de dados cria condições para calibrar as alíquotas e estimar com precisão o impacto das mudanças para cada ente federado. Ao eliminar brechas para sonegação e pôr fim à guerra fiscal, o novo regime abriria espaço para a redução de alíquotas. O otimismo do Ministério da Fazenda merece uma ressalva. Considere-se o argumento de que uma reforma tributária abrangente é um jogo em que todos ganham. Com certeza, mais eficiência permitiria mais crescimento. E, pelo menos em teoria, seria possível construir um sistema de compensação entre perdedores e ganhadores. A compensação entre entes da federação seria possível. Mas um sistema de compensação entre setores não faria sentido, quando o objetivo é a uniformização de alíquotas. Portanto, alguns interesses se verão prejudicados e tentarão impedir a reforma. Panela em que muitos mexem, sai crua ou queimada. Ao anunciar renúncias fiscais para empréstimos bancários ou para setores que sofrem perdas com a apreciação do real, o ministro da Fazenda vai na contramão da reforma proposta por seu secretário. Não parece uma boa idéia criar interesses que se oporão à simplificação tributária. Não tentes o faminto, dando-lhe pão a cortar. Governar é uma batalha permanente contra o caos - uma feijoada onde aos egos inflados dos poderosos se misturam interesses, demandas, choques externos e negociatas. O reformador precisa ter um tanto do político (para encontrar pontes em que a sociedade avance sobre terreno esburacado e dividido) e outro tanto da disposição de D. Quixote (para lutar contra os moinhos da realidade). Mas estará condenado a quixotesco fracasso se enxergar damas elegantes e recatadas no lugar de prostitutas debochadas e vulgares. Eliana Cardoso é economista e escreve, quinzenalmente, às quintas-feiras