Empresas ajudam Receita a fazer regras
Utilizado em outras partes do mundo para aperfeiçoar a tributação, convênio será investigado pelo Ministério Público Sindicato de auditores vê ameaça à independência do fisco; entidade empresarial diz que atua dentro da lei e em prol do comércio exterior FÁTIMA FERNANDES CLAUDIA ROLLI DA REPORTAGEM LOCAL Um convênio firmado entre a Receita Federal e o instituto privado Procomex permite que um grupo de empresas possa sugerir e elaborar normas relacionadas com a logística do comércio exterior por meio de contato estreito com a cúpula da Coana (Coordenação Geral de Administração Aduaneira). A proximidade entre as empresas reunidas no Procomex e a Receita Federal -representantes dos dois órgãos se reúnem ao menos uma vez por mês - levanta uma discussão entre auditores fiscais, advogados e procuradores: até que ponto um grupo de empresas pode interferir em normas que tratam de processos de importação e exportação e até do controle aduaneiro no país? Com sede em São Paulo, o Instituto Procomex é bancado por 37 empresas, como American Airlines, Basf, Eaton, Fiat, Mattel, Bosch e Unilever. Funciona como braço jurídico da Aliança Pró-Modernização Logística do Comércio Exterior, que congrega 70 entidades representantes da indústria, do comércio e do transporte. O Ministério Público Federal em São Paulo abriu procedimento administrativo na semana passada para verificar se o convênio assinado entre a Receita e o Procomex em julho do ano passado é legal ou não. O MPF entendeu que era preciso realizar investigação por avaliar que as empresas podem e devem cooperar com a Receita, mas não necessariamente por meio de convênios, que limitam as discussões com grupos de empresas. Legalidade A procuradora que cuidará da investigação, Inês Virgínia Prado Soares, diz que, a partir desta semana, irá pedir informações sobre o convênio e reuniões que já ocorreram entre representantes da Receita e do Procomex e verificar se isso está adequado à lei de licitações. O Unafisco (Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal) também procurou o MPF em Brasília para solicitar investigação sobre a legalidade do convênio, cujo objetivo é "implementar ações conjuntas visando melhorar a prática, a estrutura e o desempenho e suporte logístico na área de comércio exterior." As reuniões realizadas entre a Receita e o Procomex contaram com a participação do coordenador-geral da Administração Aduaneira da Receita Federal, Ronaldo Medina. Um dia após deixar o cargo, na última quarta-feira, ele se reuniu com empresas do instituto para apresentar seu substituto, Francisco Labriola, que passará agora a se reunir com os representantes da instituição. A sintonia entre a Receita e o Procomex pode ser constatada no próprio site do instituto (www.procomex.org.br). Foram montados cinco grupos de trabalho com representantes do fisco e do instituto. Um dos vários boletins da entidade -o Procomex News- divulgados no site destaca a participação do instituto na elaboração da instrução normativa nº 650, de maio de 2006, que dispõe sobre a habilitação de importadores e exportadores da Zona Franca de Manaus para operação no Siscomex (Sistema Integrado de Comércio Exterior). "A nova instrução atende muitos dos pleitos que o Procomex encaminhou à Coana por ocasião de diversas reuniões realizadas pelo grupo de trabalho instalado para formalizar as sugestões. Vários desses encontros contaram com a presença de Ronaldo Lázaro Medina, coordenador-geral da Coana, além de outros representantes do governo e do setor privado", afirma o boletim. "Na instrução nº 650, trabalhamos junto com a Receita no sentido de diminuir as exigências feitas às empresas", afirma John Edwin Mein, coordenador-executivo do Procomex. Por 13 anos, o executivo presidiu a Câmara Americana de Comércio de São Paulo. Sócios Para Carlos André, presidente do Unafisco, o convênio mostra que a Receita privilegia um grupo de empresas na hora de obter sugestões de procedimentos e normas. "Só participam das reuniões os sócios do instituto. Não há outro grupo de empresários tão afinado com a cúpula da Coana. Isso é no mínimo imoral." Nory Celeste Sais De Ferreira, diretora de defesa profissional do sindicato dos auditores fiscais, diz que vê com "preocupação" o convênio porque a aduana é um setor "estratégico" no país. "A Receita deveria agir com independência e defender o interesse público." Mein afirma que a instituição está aberta a quem quiser se associar e que não existe privilégios. Os sócios pagam uma mensalidade de R$ 2.250. As reuniões, segundo ele informa, são abertas a todos os interessados. "Nosso objetivo é tornar o país mais competitivo para facilitar o comércio entre o Brasil e o resto do mundo. Não trabalhamos para uma empresa ou um setor específico, mas sim para o bem comum das importações e exportações", diz. CONVÊNIO COM EMPRESAS SEGUE MODELO DA ONU, AFIRMA RECEITA Órgão diz que pode aceitar sugestões ou não e que está aberto a fazer outros acordos Francisco Labriola, coordenador-geral da Coana (Coordenação Geral de Administração Aduaneira) da Receita Federal, informa que o convênio assinado entre a Receita Federal e o Instituto Procomex segue modelo internacional da ONU (Organização das Nações Unidas) de cooperação entre os setores privado e público. "Há muito tempo a aduana funciona como gargalo do comércio exterior no país. Isso, muitas vezes, nem é culpa da Receita. Por isso, a Receita fez esse convênio com a iniciativa privada, que nos fornece subsídios, sugestões, que podemos aceitar ou não, para modernizar o sistema aduaneiro." Na sua avaliação, o Procomex não representa um pequeno grupo, mas muitas empresas com interesse em resolver questões relacionadas ao comércio exterior brasileiro. "Acho muito bom que o Ministério Público faça investigação [sobre o convênio], pois isso nos dá segurança e publicidade. Estamos bem tranqüilos", afirma Labriola, que acaba de ocupar o cargo de coordenador-geral da Coana em substituição a Ronaldo Medina, que, por sua vez, foi para a área de assuntos tributários. Labriola informa que a Receita Federal é a favor de qualquer iniciativa que possa levar a instituição a saber o que a sociedade pensa e espera da aduana brasileira. Ele confirma que o convênio com o Instituto Procomex é o único desse tipo que a Receita firmou até agora. "Mas estamos abertos a realizar outros convênios. Basta que as entidades nos procurem. Um fato é engraçado: quando o governo se fecha para a sociedade, há reclamação e, quando se abre, também há reclamação." O coordenador-geral da Coana informa que o Procomex não propõe norma nem minuta de projeto de lei. "O que o instituto faz é listar os problemas e dizer onde eles estão. Os representantes do instituto fazem consulta à Receita Federal, sugerem soluções. Nós, na verdade, queremos que eles apresentem sugestões." Para a Receita Federal, quem vê problema no convênio provavelmente não tem interesse na modernização do sistema aduaneiro do país. (CR e FF) PARA EMPRESAS, CONVÊNIO AGILIZA PROCESSO Participante diz que intenção nas reuniões com a Receita não é fazer "lobby", mas "melhorar e modernizar aduana nacional" Executivo que freqüenta encontros do Procomex afirma que competitividade do setor externo brasileiro é uma das principais metas A Bosch, uma das 37 empresas associadas ao Instituto Procomex, informa que se filiou à instituição após constatar seu trabalho com a Receita Federal, por meio de convênio para melhorar a competitividade do sistema aduaneiro brasileiro. "O Instituto Procomex quer implementar um sistema aduaneiro desburocratizado, que proteja os interesses nacionais e facilite o controle do comércio exterior", afirma Anselmo Riso, gerente de Logística Corporativa, Importação e Exportação da Bosch. "Achamos que o instituto é o caminho para participar de discussões que buscam a modernização de procedimentos aduaneiros com o governo. A Receita Federal está aberta a todos", completa. Nas reuniões que acontecem com representantes da Receita Federal, segundo informa o executivo, participam representantes de cerca de 50 empresas e entidades. "Não participamos com mentalidade de "lobby" desse ou daquele setor. A idéia é sempre discutir temas que possam modernizar a aduana brasileira. Agora, tem gente que é contra isso." A Fiat se associou ao Procomex no ano passado, segundo informa sua assessoria de imprensa, após receber uma proposta da entidade. Apesar disso, afirma não ter "participação ativa em discussões e deliberações" do Instituto Procomex. Ainda segundo a montadora, o setor de comércio exterior da empresa avaliou que seria interessante participar do Procomex e delegou a função à Fiat Sadi -empresa que atua como gestora de negócios relativos ao comércio internacional de todo o grupo Fiat. A montadora também ressaltou ainda que quem a representa nas negociações com os diversos órgãos do poder público é a Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores). A entidade, que reúne fabricantes de autoveículos (automóveis, comerciais leves, caminhões, ônibus) e de máquinas agrícolas (tratores de rodas e de esteiras, colheitadeiras e retroescavadeiras), não consta na lista de associadas ao Procomex. A Folha procurou várias empresas sócias do Instituto Procomex e representantes de indústrias para falar sobre o convênio firmado com a Receita Federal, mas elas não telefonaram de volta para a reportagem nem responderam aos e-mails. (FÁTIMA FERNADES e CLAUDIA ROLLI) ACORDO COM RECEITA PARA ENCAMINHAR SUGESTÕES É INÓCUO, DIZEM TRIBUTARISTAS O convênio entre a Receita Federal e o Instituto Procomex é considerado inócuo, oficializa e explicita o "lobby" no Brasil, mas aparentemente não é ilegal, na opinião de especialistas tributários e advogados. Para Everardo Maciel, que foi secretário da Receita Federal e hoje é consultor tributário, o convênio firmado entre o órgão e o instituto é inócuo. "Acho até um ato de natureza política desnecessário. A Receita pode receber sugestões de qualquer pessoa, entidade. Está sempre aberta para isso. Não é preciso ter convênio." Na opinião de ex-dirigentes de alto escalão da Receita, que preferem não ter seus nomes divulgados, o texto do convênio é "genérico demais" e pode facilitar o acesso a informações do órgão consideradas "estratégicas" -como as relativas à velocidade dos transportes aduaneiros, que podem acabar favorecendo grupos que atuam nesse segmento. Para o advogado Antonio Carlos Rodrigues do Amaral, presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SP, a existência do convênio é desnecessária especificamente para as atividades listadas no acordo. No entanto, ele ressalta que a Receita deveria ampliar o número de convênios realizados com outras instituições. "Já que a Receita optou por firmar convênio com uma determinada entidade, o que me parece adequado, até para a transparência da formulação de políticas públicas, é que se estabeleçam convênios também com outras entidades", diz Rodrigues do Amaral, que já presidiu a Comissão de Comércio Exterior e Relações Internacionais da Receita Federal. Ao estabelecer mais convênios, a Receita também obedeceria aos critérios constitucionais de impessoalidade, transparência e de conceder publicidade a seus atos presentes no artigo 37 da Constituição Federal, como afirmam os advogados consultados. Lobby "É positivo ainda que o convênio deixe transparente o fato de existir uma entidade que representa determinados interesses e que estará ativamente atuando no governo. É a velha discussão da regulamentação do lobby no Brasil", afirma Rodrigues do Amaral. Para Paulo Viceconti, professor da FGV e ex- funcionário da Receita Federal durante 28 anos, o convênio é positivo porque permite às empresas e entidades oferecerem sugestões para "desburocratizar de forma transparente" a área aduaneira. (CR e FF)