Transferência das atribuições privativas dos AFRFs é ilegal e inconstitucional

04 Jun 2007
Uma análise do Departamento de Assuntos Jurídicos do Unafisco Sindical, apresentada durante a Plenária Nacional da última sexta-feira (1º/6), põe em xeque o Regimento Interno da recém-criada Receita Federal do Brasil (RFB), ao comprovar que ele padece de vícios flagrantes de inconstitucionalidade e de ilegalidade. Embora o novo Regimento, em alguns casos, apenas reafirme violações de regimentos anteriores, é explícito o avanço sobre as atribuições do cargo de auditor-fiscal, especialmente quanto ao poder de decisão. A palavra “decidir” foi fartamente incorporada às incumbências de superintendentes, delegados e inspetores, mesmo em matérias reservadas por lei ao nosso cargo. Na análise, os advogados do Unafisco tecem uma argumentação calcada em bases constitucionais e legais, para mostrar que o Regimento desrespeita os princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, probidade administrativa e eficiência. As conclusões do Departamento Jurídico partem do fato de que o atual regimento da RFB choca-se com a Constituição Federal ao delegar atribuições privativas dos auditores-fiscais para ocupantes de cargos de confiança (superintendentes, delegados e inspetores). Em seu artigo 37, inciso V, a constituição determina que servidores em funções de confiança devem exercer, exclusivamente, atribuições de direção, chefia e assessoramento. Ao fazer essa “transferência” de atribuições, o novo regimento tenta se valer, forçosamente, do que se chama em direito administrativo de “avocação” – ou seja, o superior hierárquico chama para si (avoca) responsabilidades pertinentes à função do subordinado. Mas, no caso dos auditores-fiscais da RFB, essa investida não tem qualquer base legal. Primeiro porque as chefias só poderiam avocar, sob reais justificativas, atribuições gerais dos servidores; em hipótese alguma, as privativas. Ambas estão definidas no artigo 6º da Lei 10.593/02. O segundo motivo é que delegados, inspetores e superintendentes, ao assumirem funções inerentes do auditor-fiscal, estarão extrapolando suas atribuições constitucionalmente definidas: chefiar, dirigir e assessorar. Os advogados que produziram o relatório argumentam que, muito embora esses chefes também sejam auditores-fiscais, o exercício das suas atribuições como função de confiança não se relaciona com a atividade fim da RFB. No relatório, eles delimitam essa fronteira: “Note-se que, embora os servidores Delegados, Inspetores e Superintendentes, investidos nos cargos comissionados e nas funções de confiança, sejam ocupantes de cargos efetivos, tal condição é apenas requisito para a investidura naquelas funções, mas as atribuições serão apenas de chefia, assessoramento ou direção.” Resumo: a “transferência” de atribuições privativas de auditores-fiscais para as funções de administração desvirtua o dispositivo constitucional que trata das atribuições dos cargos comissionados e das funções de confiança. Sobre isso, o relatório traz um relevante esclarecimento: “Essas atividades (chefia, direção e assessoramento) dizem respeito ao gerenciamento e modernização da administração tributária, em caráter exclusivamente administrativo, e não técnico, como a fiscalização, lançamento, arrecadação e julgamento de processo administrativo-fiscal, atividades próprias das autoridades administrativas tributárias.” Improbidade – A análise jurídica do Regimento Interno da RFB também revelou outras anomalias. Na medida em que essa norma concentra atribuição nas chefias, ela também potencializa a necessidade de criação de um maior número de cargos comissionados, o que irá repercutir em gastos desnecessários ao erário. Destaca o relatório: “Portanto, há notória violação ao princípio da legalidade, da probidade administrativa e, indiretamente, da eficiência, pois os atos da Administração Pública estão concentrados nos servidores comissionados, provocando o retardamento de seu funcionamento”. Estado Democrático de Direito – Há, nesse contexto, um fato relevante de conseqüências ainda imprevisíveis, na medida em que ele compromete o Estado Democrático de Direito. O assunto é destrinchado no relato do Departamento de Assuntos Jurídicos. O Código Tributário Nacional (CTN), anterior à Constituição Federal e que foi acatado por ela como Lei Complementar, define que lançamentos e procedimentos de fiscalização são de competência da autoridade administrativa. Mais adiante, a Lei 10.593/02, ao ratificar essas atribuições com sendo dos auditores-fiscais, admitiu, portanto, que eles estão imbuídos dessa autoridade administrativa. Nesse sentido, acrescenta o relatório: “O Secretário da Receita Federal do Brasil, ao retirar a autonomia administrativa-tributária do Auditor-Fiscal, acaba por violar o Estado Democrático de Direito, vindo a Secretaria da Receita Federal do Brasil desmoralizar a sua própria base, Auditores-Fiscais, passando, indiretamente, uma imagem desacreditada do órgão, até porque, são os Auditores-Fiscais responsáveis pela construção da credibilidade da Secretaria da Receita Federal do Brasil.” As conclusões dos advogados do Unafisco vão ao encontro de análises feitas na apresentação do painel Autoridade e Poder, durante o seminário A Receita Federal e o Interesse Público, realizado em Campinas (SP), em março passado. Na oportunidade, o professor titular de Filosofia da Unicamp, Roberto Romano da Silva, sentenciou que o “golpe de Estado se faz nas pequenas modificações da lei, se faz nas pequenas modificações da aplicação do direito e se faz na luta de poder daqueles que ocupam os cargos do Estado”. Para Romano, existe hoje uma crise mundial do Estado Democrático de Direito e, diante dela, é preciso encontrar meios de atuação no momento certo. Isso porque “uma das regras do golpe de Estado é justamente que, quando ele aparece, ele já está feito, pois a medida já foi assumida e não há como resistir”. Ele sustentou que, na atualidade, imaginar o golpe de Estado como algo sangrento, nos moldes do que já aconteceu em países sul-americanos, “é não entender o que é golpe de Estado”. Portaria 95/07 – Essas “pequenas modificações” legais de que falou o filósofo da Unicamp podem ser claramente observadas na Portaria 95/07, do Ministério da Fazenda, que aprovou o Regimento Interno da RFB. O problema é que a prerrogativa da Administração Pública para gerar atos a fim de complementar a lei não lhe confere o poder de alterar a norma. Se isso acontece, caracteriza-se um abuso do poder regulamentar, pelo fato de avançar sobre atribuições que são dos legisladores. “O Regimento Interno da Secretaria da Receita Federal do Brasil é um exemplo típico de ato regulamentar abusivo, pois confere aos ocupantes de cargo em comissão atribuições privativas de AFRFB [Auditores-fiscais da Receita Federal do Brasil]”, diz o relatório. Mais adiante completa: “Mesmo porque, sob o aspecto formal, na hierarquia dos atos normativos não cabe à Portaria regulamentar disposições de lei ordinária e muito menos limitar competência atribuída pelo Código Tributário Nacional, que possui natureza e eficácia de Lei Complementar”. Ação Judicial – Diante de toda essa argumentação, o Departamento de Assuntos Jurídicos conclui que é possível, sim, propor medida judicial para assegurar as atribuições e prerrogativas dos auditores-fiscais. Porém, ressalta que essa iniciativa deve ser precedida de uma ampla mobilização para demonstrar ao Judiciário que, além de respaldada em conteúdo legal, essa luta pela reconquista de atribuições é histórica, diante das renitentes tentativas da administração em retirá-las. Essa observação é fundamental porque, segundo o relatório, “os tribunais recentemente têm se posicionado politicamente frente às ilegalidades praticadas no âmbito do Poder Executivo, a fim de preservar a continuidade do serviço público, relativizando os princípios constitucionais da Administração Pública.” Por esse motivo, a Plenária Nacional estabeleceu um processo de discussão, levantamento de dados e mobilização para robustecer a luta política e, se for necessário, subsidiar as impugnações judiciais.