Entrevista Dão Real: “É fundamental que a RFB seja também promotora da cidadania tributária ”

02 Jul 2007
O Boletim continua hoje as entrevistas com os auditores-fiscais indicados pela categoria para compor a lista tríplice do cargo de secretário da Receita Federal. Na segunda entrevista, o auditor-fiscal Dão Real Pereira dos Santos fala, entre outros assuntos, sobre o risco de diminuição do status de autoridade fiscal do AFRFBs, da percepção de um descolamento da atividade aduaneira do interesse público e sobre o sistema tributário brasileiro. Leia, a seguir, a entrevista de Dão Real Pereira dos Santos ao Boletim. Boletim: O momento atual é ou não um dos mais dramáticos da história da SRF? E da categoria dos AFRFs? Dão Real: Em primeiro lugar, eu gostaria de aproveitar esta oportunidade para externar meu agradecimento a todos os colegas que lembraram do meu nome no processo de indicação para a composição da lista tríplice. Sinto-me profundamente honrado e surpreso com tamanho reconhecimento manifestado por meus colegas. Em relação à questão colocada, sem dúvida este é um momento muito grave para a instituição. É sempre perigoso mexer nas estruturas. Sem entrar no mérito da idéia, a forma com que este processo de fusão foi conduzido, sem um adequado estudo técnico e num tempo extremamente curto para a magnitude das mudanças, certamente vai comprometer por um bom tempo a organização interna dos serviços. As coisas mais simples como lugar e mesas para trabalhar ainda não estão equacionadas. Há um permanente estado de tensão entre os servidores, que não sabem sequer se continuarão a fazer o que estavam fazendo e mesmo, em alguns casos, se permanecerão no mesmo município. Há dúvidas sobre procedimentos nas rotinas de trabalho. Boletim: A ameaça da desconstrução das nossas atribuições acendeu o sinal vermelho? Ou seria um exagero vislumbrar o retorno malsinado das intenções que motivaram um ex-SRF de triste memória a arrancar as atribuições do cargo de AFRF para transferi-la para o órgão? Dão Real: Ambientes convulsionados são propícios para se promover disfarçadamente mudanças deste tipo, além de que há a necessidade de se normatizar o órgão resultante da fusão e com isso a edição de regimento interno – em mais de uma etapa – e outros atos de organização, que dão oportunidade para tais mudanças. A transferência de atribuições do auditor para a instituição, ou seja, do titular de cargo efetivo para o titular de cargo de confiança, não deixa de ser uma forma a mais de concentração de poder. Este risco é permanente, sobretudo porque este modelo gerencial de administração pública não contempla a figura da autoridade administrativa. Boletim: Um procurador da República afirmou que o AFRF caminhava para a extinção, caso fosse usurpada sua autoridade administrativa. Percebe-se algum movimento nesse sentido à vista do Novo Regimento? Dão Real: Há sem dúvida uma tendência de valorização exacerbada das funções de administração na RF. Fala-se inclusive numa carreira gerencial. Não creio que haja riscos de extinção do cargo de AFRFB. No entanto, há, sim, risco de diminuição de seu status de autoridade fiscal, na medida em que se concentram nas mãos dos detentores de cargos de confiança poderes de decisão que deveriam ser preservados para o cargo efetivo, detentor de atribuições privativas de decisão administrativa conferidas em Lei. Não se trata apenas de uma questão corporativa, mas de uma forma de relacionamento das instituições públicas com a sociedade. A titularidade das atribuições relevantes nas mãos dos AFRFBs, cargo de provimento por concurso público, com garantias e prerrogativas legais, existe como forma de garantir que tais atribuições sejam realizadas de forma impessoal, imparcial, isenta e livre de pressões de ordem política e econômica. Boletim: Existe na climatização do novo fisco ajuntado a possibilidade de uma disputa interna pela hegemonia funcional, com o comprometimento de algumas prerrogativas anteriores dos AFRFs? Dão Real : Ora, a incorporação da Receita Previdenciária pela Receita Federal e a extinção dos antigos cargos de auditoria fiscal com a criação do cargo AFRFB certamente irão incrementar disputas internas por cargos de administração. Haverá um choque de culturas que exigirá um processo de adequação e de convergência, e quem sabe até de conveniência. Boletim : Você imagina que os atuais administradores, na condição de AFRFBs, têm consciência do que realmente poderá acontecer, em termos dos riscos que a nova organização está correndo? Dão Real: Acredito que sim. Boletim: Você observa que haverá algum fortalecimento da nossa carreira e das ações concretas que empreenderemos nesse sentido, na nova configuração institucional decorrente do ajuntamento dos fiscos, ou muito pelo contrário? O transplante de culturas resultaria em mais problemas do que soluções, ou não? Dão Real: Nem um, nem outro. Como encaminhada, entendo que a fusão aponta para o enfraquecimento da carreira dos auditores. No entanto, a criação de uma mega-estrutura como esta com controle sobre toda a arrecadação federal, acabará por suscitar críticas e preocupações acerca do exagerado poder que se concentra nas mãos dos seus titulares. Esta situação sem dúvida constitui um ambiente propício para o convencimento de que a manutenção das atribuições privativas e o fortalecimento do cargo do AFRFB é forma de diluir esta concentração de poder e garantir que a instituição esteja pautada permanentemente no interesse público. Boletim : O nível de tensão e frustração poderia ser menor? Por quê? Dão Real : Sem dúvida. Se este processo todo de fusão tivesse sido conduzido de forma mais lenta e criteriosa, passando inicialmente por um processo de integração dos sistemas de informação e de fiscalização, se tivesse havido uma maior participação dos servidores envolvidos, se tivessem sido feitos estudos técnicos que justificassem e demonstrassem efetivamente as melhorias que seriam alcançadas, se tivessem sido estabelecidos instrumentos mais concretos de garantia das receitas previdenciárias para a Previdência, etc., certamente a insegurança seria muito menor. Veja que a integração entre os órgãos públicos sempre foi algo desejado. No entanto, mesmo dentro da antiga estrutura da Receita Federal, esta integração não existia totalmente. Boletim : A Aduana é o órgão mais ameaçado de se ver separado dentro da nova configuração? Dão Real: Se houver alguma cisão nesta fusão, certamente seria da Aduana. A potencialização do aspecto arrecadador da super-receita fez salientar a distinção entre os objetivos desta parte da instituição – a Aduana – com o restante: tributos internos e previdência. A tendência a um isolamento da área de controle aduaneiro em recinto alfandegário e de, quem sabe, das concessões e dos controles de regimes especiais, não pode ser desconsiderada neste contexto. Boletim : Para onde vai a Aduana? Dão Real : Ao que tudo indica, a Aduana está sendo refeita sob outros fundamentos. A facilitação do comércio internacional tem sido o paradigma desta reconstrução. De fato, eu não sei para onde vai, ou até onde vai este processo de adequação do sistema aduaneiro aos interesses dos atores do comércio. Talvez estejamos caminhando no sentido da terceirização da atividade aduaneira. De qualquer forma, o que se percebe é um afastamento da atividade aduaneira do estrito interesse público e uma grande preocupação em adaptar as estruturas ao interesse imediato dos usuários. A Aduana precisa ser modernizada, sem dúvida. O comércio internacional, os meios de comunicação, o transporte, enfim, todas estas atividades se modernizaram. A tecnologia trouxe uma outra dinâmica ao comércio. As fraudes no comércio internacional também evoluíram. A Aduana deve ser preparada e instrumentalizada para enfrentar esta nova realidade. Entendo que precisamos de fato modernizar os instrumentos com vistas a melhorar a qualidade dos controles e a aumentar a percepção de riscos. Boletim: Na sua visão do que deveria ser uma administração tributária o que falta, em sentido amplo, tanto em relação ao passado, que você vivenciou, mas também em relação à visão de futuro, do ponto de vista estratégico? Dão Real : É preciso repensar a administração tributária. Qual a sua verdadeira função, a quem serve, etc. Ela é, sem dúvida, parte do sistema tributário. Aliás, é ela que dá eficácia à política tributária. Assim, cabe à administração tributária o papel de promover a arrecadação, o que significa criar condições para que a arrecadação espontânea aconteça. Entendo que esta promoção da arrecadação poderá se dar, pelo menos, por estas duas formas: simplificação dos procedimentos para pagamento, facilitando a vida de quem é de fato contribuinte e criando e ampliando a percepção de risco pelo não cumprimento das obrigações tributárias, o que só é possível com uma fiscalização atuante e eficiente. Além disso, entendo que cabe também à administração tributária a formulação política do sistema. Boletim : Qual a sua impressão relativa à política tributária, constantemente pressionada pelo Banco Central, no tocante aos privilégios aos rentistas, em face do tratamento relativo aos rendimentos do trabalho assalariado? Dão Real : Sem dúvida, o sistema tributário brasileiro é extremamente injusto, tratando de forma benéfica e privilegiada alguns setores, especialmente o setor financeiro, em detrimento de outros. Em que pese ser a arrecadação o motivo preponderante de um sistema tributário, tratá-lo exclusivamente sob este enfoque, sem levar em conta que lhe cabe também outras funções como o de ser de instrumento potencial para a distribuição de riquezas e diminuição das desigualdades sociais, é minimizar o seu papel e não levar em conta os princípios constitucionais da isonomia, da progressividade, da capacidade contributiva, entre outros. Boletim: A questão do sigilo bancário está tratada adequadamente perante o fisco? Há algo a fazer de modo a torná-lo mais amigável aos interesses da tributação? Dão Real : O problema é como vencer as resistências. O sigilo bancário nunca poderia ser imposto contra o fisco. Ele não protege o contribuinte, mas sim o sonegador. A pretexto de se garantir um direito individual coloca-se em risco o interesse público, o que é incoerente. Entendo que é preciso trabalhar no sentido de que as informações financeiras dos contribuintes sejam compartilhadas com o fisco, seja através de acesso direto deste, seja por meio de remessas de relatórios do sistema financeiro para a Receita Federal. Talvez uma forma de operacionalizar este compartilhamento de informações possa ser a partir do cruzamento das informações decorrentes da DCPMF com a base das declarações de IR. Sempre que houvesse discrepâncias, automaticamente as contas seriam abertas à fiscalização em procedimento prévio a qualquer procedimento fiscal, em fase ainda de seleção de contribuintes ou de preparação fiscal. Boletim: O MPF encabrestou a fiscalização, inclusive politicamente, na base do “mamãe, eu posso?” – como o descreveu um procurador da República? Dão Real: O MPF, como instrumento que visa a dar transparência e segurança ao contribuinte, é recomendável. No entanto, sua natureza não é de autorização, mas de comando, ordem, determinação, emitida pelo chefe da unidade. O lançamento, nos termos do CTN, é prerrogativa do AFRFB, e é atividade vinculada. Realizar o procedimento fiscal é atribuição legal privativa do AFRFB. Ora, fiscalizar e lançar, para o auditor-fiscal, não deveria depender de uma ordem, até porque, por uma questão lógica, quem tem poder para ordenar um procedimento, em tese, teria também poder para interferir nele. Portanto, no que se refere à fiscalização e ao lançamento, a iniciativa não deve ser da administração, mas sim da autoridade fiscal, cabendo à administração ou ao próprio sistema de registro da operação fiscal, para efeito de garantir a transparência e a segurança ao contribuinte, emitir um atestado ou aviso de abertura de procedimento, ou algo com efeitos semelhantes. Isto não se confunde com a atividade de seleção de contribuintes: a impessoalidade que deve nortear a ação administrativa, somada à necessidade de otimização dos recursos disponíveis, exige que a seleção dos contribuintes e dos focos para procedimentos fiscais seja realizada de forma objetiva e a partir de parâmetros técnicos. Em sua opinião, que mecanismos precisariam ser implantados para garantir a justiça no sistema tributário, a eficiência e a transparência das atividades e das políticas da RFB? Dão Real : A Receita Federal é uma instituição privilegiada pela qualidade de seu corpo funcional. A capacidade de seus servidores é sem dúvida uma das maiores do serviço público federal. A formulação política para a construção de um sistema tributário mais justo e equilibrado e de um sistema aduaneiro mais eficiente na defesa dos interesses do país não pode prescindir, de forma alguma, das contribuições internas da instituição. A inteligência humana é, sem dúvida, o maior patrimônio da Receita Federal. Neste sentido, é preciso investir na formação profissional, com a instituição de programas permanentes de treinamento e de reciclagem. De outro lado, nenhuma instituição pública de Estado será eficiente se não tiver condições de perceber em suas atividades o interesse público a ser promovido. Assim, há também a necessidade de que a RFB crie mecanismos que permitam uma maior proximidade com a sociedade com vistas não apenas a identificar o interesse público, como também a submeter-se de forma transparente ao controle da sociedade, e não se confunda isso com submeter-se ao controle de determinados setores representativos de interesses privados. Neste sentido, é fundamental que a instituição seja também promotora da cidadania tributária, inclusive dando conhecimento aos contribuintes da real carga tributária por eles suportada.