E à esquerda, o que se vê?

05 Jul 2007
DEBATE ABERTOO governo Lula continua sendo uma referência à esquerda, tanto porque a direita continua fazendo oposição a ele, como no caso da regularização dos sacoleiros, quanto porque o povão continua cerrando fileiras ao redor e na retaguarda dele.Flávio Aguiar Semana passada houve um acontecimento de fato importantíssimo no plano político nacional e internacional: o governo baixou medida provisória no sentido de regularizar a prática dos sacoleiros que vão buscar mercadorias no Paraguai. Os chamados sacoleiros passariam a ter um limite anual de importação (cujo valor não está fixado), mediante a abertura de uma microempresa ou algo parecido, e pagariam um imposto unificado. A medida teve apoio do governo paraguaio, para quem a atividade dos sacoleiros na fronteira é importante fonte de renda nacional.Pronto! Nossa! Houve uma gritaria na indústria nacional, em particular na de produtos eletrônicos, e na imprensa conservadora, com editoriais, artigos, entrevistas. O tom era de que o Brasil, que já se curvara perante a Bolívia, agora iria se curvar perante o Paraguai. Ou então que a MP iria legalizar o contrabando, e por aí foi, numa manifestação unificada de dois preconceitos de nossas classes dominantes e dirigentes: 1) qualquer aproximação com os nossos vizinhos latinos mais pobres dá nojo; 2) qualquer coisa que facilite a vida do povão dá asco.Ninguém sabe ao certo quantos são os sacoleiros. Sabe-se que no ano passado o número de turistas em Foz do Iguaçu passou do milhão. Mas ninguém mediu quanta gente cruzou duas vezes num só dia a fronteira para buscar mercadorias. Entretanto, basta visitar as feiras especializadas em cidades como Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e outras para ver como essa atividade é importante e como representa um meio de vida decisivo para muitos e muitos brasileiros, tanto os que vendem quanto os que compram. Inclusive é discutível que em muitos casos, até mesmo em eletro-eletrônicos, cds, DVDs e outros, a atividade sacoleira prejudique a indústria ou o comércio tradicional brasileiro. Porque em muitos desses casos os públicos atendidos são muito diferentes, e não visitam os mesmos locais de compra e venda. Quem vai atrás do produto sacoleiro não vai ao shopping center comprar o produto mais caro, e com freqüência se dá o vice-versa.Pois bem: a direita e quem muito antigamente se intitulava “as classes conservadoras” se alçaram e gritaram. Enquanto isso, e a esquerda da esquerda? Não vi coro candente sobre esse tema, só uma ou outra manifestação de quem reclamou de que a alíquota de imposto unificado ainda era muito alta (25%), e outras críticas do tipo.Qual a posição do PSOL sobre isso? Do PSTU? Do MST? E de outras siglas? Não digo que isso ganhasse as manchetes principais, mas deveria ter ganho pelo menos as secundárias. O que diz o movimento sindical a respeito? E o movimento sindical que se acredita mais à esquerda? Estou levantando estas perguntas provocativas porque há um contingente enorme de brasileiros que parecem esquecidos nessas horas. E que de fato nada mais têm como referência que não seja a partir dos programas definidos como assistenciais do governo. Em entrevista recente à revista Época, João Pedro Stedile disse com justiça que esses programas salvam vidas, mas não distribuem renda. É verdade. Mas deve-se medir bem o que quer dizer “salvam vidas”: não é apenas a criança que deixa de morrer de doença ligada, por exemplo, à desnutrição. São milhões de brasileiros que ganham uma “referência social” - e cultural também: uma carteira de identificação, um cadastramento, algo parecido.Não vou ficar discutindo aqui se nos movimentos partidários que reivindicam estar mais à esquerda à razão está com quem diz que o governo Lula deixou de ser de esquerda ou com quem diz que nunca foi. A razão não está de posse de ninguém de modo absoluto em questões como essa, até porque interessa ver tanto o posicionamento do governante e seu partido quanto o das forças e dos grupos sociais que se movimentam ao seu redor, tanto os contra quanto os a favor. Nesse sentido, o governo Lula continua sendo uma referência à esquerda, tanto porque a direita continua fazendo uma oposição cerrada ou velada a ele quanto porque o povão continua cerrando fileiras ao redor e na retaguarda dele.A questão é a de que plano ou projeto alternativo vem sendo apresentado por estas forças? Uma escalada promissora foi dada pelo MST, que pôs em discussão seu próprio projeto de reforma agrária. Mas a suta situação é delicada num sem número de sentidos, sendo um deles, por exemplo, a atitude diante deste projeto cujo debate é central na vida brasileira, o da transposição do Rio São Francisco. Sabe-se que a posição oficial do MST é contra o projeto, como de um sem número de entidades da sociedade civil. Mas por outro lado sabe-se também que a base desses movimentos está amplamente rachada: nos estados doadores de água a maioria da base é contra; nos receptores de água, a maioria da base é a favor.O que isso indica? Que o ser humano é “naturalmente” egoísta? Não. Indica que falta uma discussão maior e mais ampla de projeto nacional, coisa que a esquerda da esquerda precisa fazer, para além de seus preconceitos e prejuízos. Há mais na terra o que fazer do que ficar só correndo atrás da pauta udenista em torno do Senador Renan Calheiros (na verdade mais porque ele é visto hoje como aliado de Lula do que por outra coisa), embora sim o caso mereça investigação séria.E o meu leitor amigo, a minha leitora amiga (o que inclui os críticos, bem entendido), são a favor ou contra a medida sobre os sacoleiros?