Decreto 6.104 extrapola lei para avançar sobre atribuições privativas do AFRF

10 Jul 2007
Sob o argumento de propor a regulamentação da Lei Complementar 105/2005, o Decreto 6.104/2007 excede o seu próprio escopo e o arcabouço legal vigente, desvirtuando o que em princípio ele pretendeu regulamentar. O decreto transfere a titularidade da execução de procedimentos fiscais do cargo de AFRF para o Órgão (SRF/RFB), para todos os procedimentos fiscais – e não apenas para os que pretendeu regulamentar. O decreto, editado no Diário Oficial da União no mesmo dia da publicação do Regimento Interno da Receita Federal do Brasil (30 de abril), guarda com ele uma semelhança intrínseca: ambos avançam sobre as atribuições do cargo de auditor-fiscal, à revelia da lei. O decreto está anexo ao Boletim. Para entender a dimensão e a gravidade do que propõe esse decreto, é necessário remontar à publicação da Lei Complementar 105, de janeiro de 2001. Essa lei dispõe especificamente sobre o sigilo das operações de instituições financeiras. Em seu artigo 6º, ela define que o exame de documentos, livros e registros de instituições financeiras será feito por autoridades e agentes fiscais tributários da União, estados e municípios, desde que haja “processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso”. "Autoridade administrativa" – Esse artigo estabelece ainda que tais exames só ocorrerão caso a “autoridade administrativa competente” os considere indispensáveis. Para dirimir qualquer dúvida, a autoridade administrativa, entendida à luz do Código Tributário Nacional (CTN), é do responsável por constituir o crédito tributário pelo lançamento – o auditor-fiscal. No mesmo dia da publicação da Lei Complementar 105, em 2001, o governo também publicou o Decreto 3.724 para regulamentar aquele artigo 6º. Esse decreto expressa claramente que todas aquelas atribuições delegadas ao auditor-fiscal pela referida lei serão realizadas pela “Secretaria da Receita Federal, por intermédio de servidor ocupante do cargo de Auditor-Fiscal”. Eis aí a primeira incongruência. A Receita Federal nunca foi pessoa jurídica. Tratava-se de um órgão da administração direta. Se tivesse de existir uma pessoa jurídica nesse caso, seria a União. Com a fusão dos fiscos e, conseqüente criação da Receita Federal do Brasil (RFB), um novo decreto – o de número 6.104 – modificou o Decreto 3.724, potencializando as distorções que já estavam em curso. Em vez de tratar especificamente das ações relativas às instituições financeiras, como fazia o texto anterior, o Decreto 6.104 estabeleceu uma generalização: “Os procedimentos fiscais relativos a tributos e contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil serão executados, em nome desta, pelos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil (...)”. Prerrogativa de lançamento: nova tentativa – Como se percebe, o decreto vai bem mais além do que estabelece a Lei Complementar 105/2001, que ele regulamenta. Importante recordar que, à época da tramitação do projeto que resultou nessa lei, os auditores fizeram gestão junto ao Legislativo para excluir dele um texto com teor semelhante ao que consta nesse último decreto. Era o Projeto de lei Complementar 77, cuja parte que retiraria a nossa prerrogativa de lançamento nós conseguimos retirar. O decreto 3.724 foi mais sutil, porém o novo decreto 6.104 reeditou, de forma sorrateira, essa tentativa feita em 1999 de retirar essa importante atribuição privativa dos auditores-fiscais. O Departamento de Assuntos Jurídicos, a exemplo do que fez com o Regimento Interno da RFB, avalia agora que procedimentos irá adotar junto ao Ministério Público e ao próprio Judiciário para evitar que mudanças, aparentemente tão sutis, representem, na essência, uma usurpação das atribuições do auditor-fiscal, especialmente quanto ao seu poder de decisão. Pelas beiradas – Este é mais um exemplo de como a Administração é capaz de investir para retirar atribuições dos auditores-fiscais por meio de instrumentos que extrapolam e contradizem a norma. Afinal, como mostrou o auditor-fiscal Tadeu Matosinho em palestra no último Conaf, a tentativa que um dia foi feita em lei complementar continuou ao longo do tempo por meio de alterações quase disfarçadas, que são feitas na legislação infralegal e aos poucos vão chegando ao nível de lei ordinária, após o que faltará somente alterar o próprio CTN. À ocasião, o AFRF explicou que "há uma série de atos gestados de maneira seqüencial que levaram à perda de autoridade dos AFRFs, nos últimos anos, e esses atos têm alguns traços comuns”, como o fato de terem sido atos normativos inferiores à lei, sendo que alguns passaram de portaria a decreto, ou acabaram virando lei, numa inversão da cadeia normativa; e a constatação de um esforço contínuo para modificar o alcance de expressões do texto legal, em particular no que se refere à definição de “autoridade” e à sua diferenciação da “mão-de-obra” executora.