O profeta da cibercultura
Entrevista Entrevista: Pierre Lévy, sociólogo GABRIEL BRUSTMais de uma década depois da publicação de O que É o Virtual? (1996), um de seus livros mais famosos, o sociólogo Pierre Lévy ainda surfa na ondas de sua produção sobre cibercultura. Isso porque, para ele, nada mudou tanto assim desde então. O que vivemos hoje seria apenas a apropriação social das ferramentas que já existiam, nas quais Lévy - próximo conferencista do ciclo Fronteiras do Pensamento, promovido pela Copesul Cultural - foi um dos primeiros a identificar um gigantesco potencial, em uma época em que poucos sabiam dizer para que servia a Internet. A ousadia que marcou seus primeiros livros, no entanto, permanece. Diante do imenso barulho causado pelo que se está chamando de "a nova fase da Internet", a Web 2.0 - mais colaborativa, diferente dos anos iniciais, de mera contemplação - , Lévy é taxativo:- Não há nenhuma diferença entre a web 1 e a web 2.0, exceto que agora há mais gente que pode participar da web.Tendo como gênese os conceitos do canadense Marshall McLuhan, que cunhou expressões como "aldeia global" nos longínquos anos 60, Lévy se tornou um dos pensadores mais representativos da revolução digital no mundo contemporâneo. Nascido na Tunísia, formou-se em Sociologia e Ciência da Informação e da Comunicação na Sorbonne, em Paris, e atualmente é professor titular do Departamento de Comunicações na Universidade de Ottawa, no Canadá. Considerado um otimista diante das transformações trazidas pelas redes, o sociólogo parte da visão do computador como um hiperdocumento vivo em expansão permanente. A Internet seria uma rede análoga às conexões entre os neurônios humanos. Lévy crê na rede não apenas como uma ferramenta para se aprofundar a democracia e se ampliar o conhecimento coletivo, mas como fundadora de uma verdadeira civilização que está apenas começando. Criador de conceitos como tecnodemocracia e cosmopédia, o sociólogo ainda luta para garantir que estas definições sobre cibercultura, das quais é um dos fundadores, sejam respeitadas. Para Lévy, o virtual, por exemplo, não se opõe ao real - como é freqüentemente citado - , mas sim ao atual. Mesmo sabendo que seu interlocutor, ao fazer tal contraposição, quer apenas diferenciar o que se passa na rede do que se passa fora dela, o sociólogo faz questão de frisar o conceito formal que deu ao virtual em seu livro de 1996. Em conversa por telefone, direto do Canadá, Lévy falou sobre a palestra que fará na próxima terça-feira em Porto Alegre e sobre o momento atual da cibercultura - sem deixar de lembrar que todo tipo de vida é real. Na rede ou fora dela.Cultura - Em seu livro O Que É o Virtual?, publicado no Brasil em 1996, o senhor diz que o ciberespaço pode apenas reproduzir o espetáculo e a mídia em grande escala, ou pode criar uma civilização centrada na inteligência coletiva. Qual dos dois está ganhando a corrida hoje?Pierre Lévy - (risos) Não há vencedores no momento. A inteligência coletiva está crescendo, como podemos ver na Wikipedia e em outros sites. A memória coletiva está sendo usada largamente. Mas os dois estão correndo juntos.Cultura - A Internet tem mostrado capacidade de enfrentar regimes totalitários e ajudar a consolidar a democracia, como o senhor previa?Lévy - Em geral, quanto ao aumento das possibilidades de comunicação servindo contra a estabilidade de regimes totalitários, o processo está relativamente lento. Temos que esperar, isso não vai acontecer logo. Mas quanto mais você tem possibilidades de criar associações e de ter contato com outras culturas, isso cria uma sociedade menos fechada e, a longo prazo, é bom para a democracia.Cultura - Podemos dizer que a definição de Zigmunt Bauman sobre valores líquidos da sociedade atual (aqueles que se modificam rapidamente e cujos laços são frágeis) foram causados pela relação com o virtual?Lévy - Como assim, líquidos?Cultura - É uma teoria desse filósofo polonês radicado na Inglaterra, autor de Modernidade Líquida e Amor Líquido. O senhor acha que a instabilidade das relações tem a ver com o virtual?Lévy - Bem, primeiro teríamos que concordar com essa coisa da liquidez dos valores, mas não sei se entendi direito (risos). Cultura - Mesmo que não concorde Zigmunt com Bauman, o senhor acha que o virtual está modificando os relacionamentos entre as pessoas?Lévy - Não acho que tenha a ver. Podemos falar em um tipo de aceleração de processos, todos os tipo de de processos, incluindo o conhecimento, a economia e a política. As coisas são rápidas, e isso não é causado pela Internet, ela é apenas um dos vários fatores que contribuem para acelerar todos os processos culturais e sociais. Mas é claro que a globalização em geral traz grandes facilidades a vida urbana.Cultura - Vemos hoje ascender à adolescência a primeira geração que nasceu usando a Internet. É possível identificar características específicas dessa geração?Lévy - A minha resposta não vai ser interessante porque a minha resposta é: sim, eles são diferentes, porque eles estão muito acostumados à Internet. Eles estão procurando por informações de maneira fácil, estão se entretendo nas redes. É fácil para eles usar computadores e videogames, mas não é uma completa mudança, não é uma questão de geração. O mais importante é que nós estamos construindo uma nova civilização. E seria um grande erro pedir aos jovens que guiem a nova civilização (risos). Cultura - O senhor diz que as redes modificam algumas de nossas capacidades cognitivas. Como isso se aplica ao caso da memória, que parece ser cada vez menos utilizada, uma vez que tudo está em um grande banco de dados acessível a um clic?Lévy - Acho que é exatamente o oposto disso (risos). A memória não é algo que está em nosso cérebro. Memória é tudo que podemos recordar. Então podemos recordar memórias do nosso cérebro, mas também podemos recordar de livros, de bibliotecas ou da web. Acho que uma das mais óbvias conseqüências do advento do ciberespaço é a documentação da memória.Cultura - O senhor acha que o crescimento na quantidade de pessoas patologicamente viciadas em Internet se deve a um encantamento maior com a vida virtual do que com a real?Lévy - Todo tipo de vida é real, não existe virtual ou real. Só há vida humana, não há diferença. Pessoas podem ser viciadas em qualquer coisa, em televisão, em sexo, em jogos, em álcool... Vício não tem nada a ver com o objeto.Cultura - Por que a exposição da vida privada se tornou um valor nos tempos contemporâneos? Lévy - Acho que estão crescendo a tendência à transparência. Há cada vez mais informação disponível online e parte dela é uma informação que antes era privada. Isso é uma tendência importante e vai continuar.Cultura - O software Second Life foi considerado fenômeno, mas agora parece perder fôlego. Seus criadores acertaram ao tentar reproduzir a vida real na Internet?Lévy - Não sei. Depende do crescimento e do que as pessoas querem fazer. Às vezes, é bom reproduzir, às vezes é bom criar algo completamente diferente. Como posso dizer que é um erro fazer alguma coisa ou outra? (risos). O princípio da realidade virtual online vem de 20 anos, já existia. A única diferença do Second Life é que mais pessoas têm acesso direto, assim como não há nenhuma diferença entre a web 1 e a web 2 (segunda geração da Internet, que reforça o conceito de troca de informações e colaboração), exceto que agora há mais pessoas que podem participar da web. Há em geral um movimento de apropriação por parte do público cada vez maior das mídias online. Só o que há de novo no Second Life é que ele está se tornando uma espécie de fenômeno social, mas do ponto técnico não tem nada novo.Cultura - O que é realmente novo hoje na Internet?Lévy - Estamos esperando por algo novo (risos). O que há de novo é a apropriação social da tecnologia da web e o progressivo crescimento de um tipo de espaço público global, mas acho que vai ser, no futuro, do ponto de vista conceitual e técnico, algo que não conhecemos hoje. No momento, estamos vivendo a fase da apropriação social. Vão existir novos adventos no futuro, provavelmente algum tipo de inteligência artificial distribuída.Cultura - No que o senhor está trabalhando atualmente?Lévy - Em Porto Alegre vou falar sobre minha atual pesquisa, que é sobre uma nova língua que inventei. Se chama IEML (Metalinguagem da Economia da Informação), pode ser acessada em todo tipo de idioma, em Francês, em Inglês ou Português, e pode ser entendida pelo computador. Uma linguagem que pode ser manipulada pelo computador. Não vai ser utilizada pelo público em geral, será uma linguagem underground, para ser manipulada por especialistas, pois é complexa, mas vai multiplicar o poder dos sistemas de busca e a habilidade de explorar informação na Internet. A linguagem hoje ainda é um problema na Internet. Temos interconexão técnica, mas não semântica. Então o objetivo da pesquisa é preencher essa lacuna semântica. Cultura - Há algo no seu trabalho sobre cibercultura que não está se confirmando ou que o senhor repensaria hoje?Lévy - Meu livro A Inteligência Coletiva foi publicado em 1994 na França, e naquele tempo as pessoas nem sabiam que a web existia. Muita gente me acusou de ser um completo utópico e irrealista, mas hoje podemos ver que estamos num real e forte movimento de inteligência coletiva. A Wikipedia, em particular, mostra isso. Há também o uso de comunicação P2P, software de código aberto, e também redes sociais online. Então, há tendências, há inteligência coletiva, mas estamos apenas no começo.