Há público para uma TV pública?
Governo define, neste mês, criação de nova rede de televisãoCarlos Haag “Eu acho televisão uma coisa muito educativa. Toda vez que alguém liga um aparelho, eu vou para a sala ao lado ler um livro.” A frase, de Groucho Marx, soa como um desafio ao lançamento, no início de dezembro, da TV pública, programada para entrar no ar com as primeiras transmissões da TV digital. Neste mês ou no próximo, o governo deve enviar ao Congresso uma medida provisória ou um projeto de lei determinando a criação da nova rede, que, segundo o ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Franklin Martins, deverá contar com um orçamento de R$ 350 milhões. “Deus me deu o segundo mandato para fazer coisas novas e uma delas é a TV pública”, afirmou o presidente Lula, para quem a nova TV será o início de um “PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) cultural”. Segundo o presidente, “hoje, em nenhum estado brasileiro, com raras exceções, você tem um programa de debate”. Ele, porém, avisa que “nós não queremos TV chapa-branca, porque ela se desmoraliza por ela mesma, não duraria três meses. Não é uma coisa para falar bem ou mal do governo, é para informar”. Qual o formato da TV pública ainda permanece um mistério (há possibilidade de que as TVEs existentes sejam reunidas numa rede, servindo como “embrião” da nova TV), há muita confusão entre “TV pública” e “TV estatal” e tampouco se sabe como a rede será financiada e qual será o seu direcionamento. Há mesmo dilemas técnicos: não existe “espaço” no espectro eletromagnético da radiodifusão para se criar canais públicos com transmissão digital em São Paulo. “Caso o processo de transformação do modo analógico se iniciasse hoje, eles estariam fora”, afirma a superintendência da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), já que durante o processo de migração cada canal vai ocupar o espaço de dois canais, o já existente, analógico, e o novo, digital. De certo há apenas declarações de Martins, assegurando que seguirá alguns pontos da “Carta de Brasília”, documento com recomendações e propostas resultante do Primeiro Fórum Nacional de TVs Públicas, realizado em maio de 2006. A carta prevê uma “nova rede pública organizada pelo governo federal que deve ampliar e fortalecer, de maneira horizontal, as redes educativas públicas já existentes”. O documento insiste que “a nova rede deve ser independente e autônoma em relação ao mercado, devendo ter seu financiamento em fontes múltiplas, com a participação significativa de orçamentos públicos”. Sua missão seria complementar a programação da TV comercial, aberta ou a cabo, “contemplando a produção regional, fomentando a produção independente e se destacando pelo estímulo à produção de conteúdos digitais de qualidade elevada, interativos e inovadores”.“No Brasil, a idéia de serviços públicos de radiodifusão foi sempre subordinada ao modelo comercial”, analisa o sociólogo Laurindo Leal Filho, membro do conselho de profissionais reunidos para idealizar a TV pública. A primeira iniciativa do gênero ocorreu em 1923, quando Roquete Pinto criou a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, cuja função seria “levar a todos os lares o conforto moral da ciência e da arte pelo rádio”. Por alguns meses, o brasileiro antecipou-se à criação da BBC britânica, nascida sob o mesmo espírito, mas financiada por uma licença paga pelos ouvintes, o que lhe garantia independência financeira. “No Brasil deu-se o contrário: o modelo sucumbiu ao comércio e, em 1932, o governo autorizou as emissoras a ocuparem 10% de suas programações com anúncios. Vargas, embora centralizador, tinha que compor com o capital privado, que possuía interesse nesse setor. Mesmo a Rádio Nacional, do governo, funcionava nos moldes de uma empresa privada”, observa Leal. Essa curiosa reunião, avalia o sociólogo Renato Ortiz, foi “a gênese da absoluta falta de limites entre o público e o privado na radiodifusão brasileira, que se perpetua até hoje, com financiamento dado pelo Estado às emissoras privadas de TV, sob a forma de publicidade e patrocínios”.