Neo-estatismo ou Estado pró-ativo?

03 Set 2007
Historicamente, além de prover instituições - estabelecendo as "regras do jogo", inclusive quanto a segurança e ordem -, os Estados nacionais têm operado como promotor do crescimento e desenvolvimento - preocupando-se com a criação de renda José Eduardo Cassiolato é professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Artigo publicado no “Valor Econômico”:Globalização é um termo que apresenta uma série de problemas conceituais e analíticos com significativas implicações políticas. A partir de seu uso sem qualificações, alguns críticos apressados têm sugerido que vivemos num mundo sem fronteiras no qual Estados nacionais perdem sua relevência.A suposição de que os Estados nacionais não têm poder e de que a força de "mercados" e de grandes corporações transnacionais restringe as opções de política, como parte de uma "globalização inevitável", é contrária à evidência histórica e à prática atual de diferentes países.Historicamente, além de prover instituições - estabelecendo as "regras do jogo", inclusive quanto a segurança e ordem -, os Estados nacionais têm operado como promotor do crescimento e desenvolvimento - preocupando-se com a criação de renda.Tal papel do Estado busca permitir às nações se engajar nas atividades mais relevantes, a partir do reconhecimento de que o crescimento da riqueza nacional é associado ao tipo e principalmente qualidade da atividade produtiva que se estabelece nas diferentes economias e sociedades.Entende-se que as causas do crescimento incluem, além do capital e do mercado, a tecnologia (novos equipamentos, "tecno" e novos conhecimentos e capacitações, "logia") e uma importante dimensão sistêmica.Sinergias, economias de escopo, etc. geram mecanismos positivos de retroalimentação (círculos virtuosos) e são responsáveis por aumentos dos níveis salariais e de renda. Mas estas não são capturadas por teorias que atomisticamente se concentram em compreeender os atores isoladamente.Já em 1485, na Inglaterra de Henrique VII, são estabelecidos incentivos e proteção a empresas nacionais que introduzem novos conhecimentos e tecnologias.A partir de então, os diferentes governos que foram capazes de promover com sucesso estratégias de desenvolvimento têm utilizado medidas de política que privilegiam certas atividades produtivas a serem conduzidas sob controle local.Isso ocorreu nos EUA após a independência, no Japão a partir da Revolução Meiji e mais especificamente a partir do fim dos anos 1940, na Coréia do Sul e em outros tigres asiáticos. Esse papel do Estado foi muito bem caracterizado por meio da expressão "governing the market".Um dos maiores mitos que têm se propagado nas últimas décadas é exatamente aquele que propõe que este papel do Estado está em desuso. O exemplo de uma das áreas sistêmicas e difusoras do progresso técnico é ilustrativo. Uma leitura cuidadosa do "Telecommunications Report", detalhado levantamento das características dessa indústria em escala global publicado bianualmente pela OCDE, permite obter uma visão mais apropriada.O relatório de 2007 confirma as mesmas tendências que acompanham os processos de liberalização e regulamentação das telecomunicações e dizem respeito a um intenso envolvimento governamental nas estruturas produtivas.Por um lado, percebe-se a manutenção do controle governamental de decisões estratégicas seja por meio da propriedade de parcelas de capital de empresas incumbentes (inclusive, mas não apenas, por meio de "golden shares"), seja por meio de intervenções e regulações permanentes tendo em vista o interesse nacional. Por outro lado, persistem restrições, barreiras e limites à participação do capital estrangeiro nas teles.Alguns casos merecem uma atenção mais detalhada até porque afetam significativamente o Brasil e os nossos interesses. No caso da Telefonica, já nos anos 1980, o governo espanhol traça uma estratégia centrada na constituição de uma indústria nacional. Tal estratégia associa a privatização sob controle nacional a uma deliberada internacionalização (voltada inicialmente à América Latina).A articulação governo, capital financeiro e capital produtivo espanhol permitiu a constituição de fortes empresas locais não apenas em telecomunicações, mas também em serviços de eletricidade, gás e petróleo.A privatização à la espanhola, admite até outras formas de intervenção por parte do governo, como ocorreu com a indicação do presidente e de alguns dirigentes da Telefonica após a última mudança de governo, em 2004.No caso do México, a Telmex foi privatizada como empresa verticalmente integrada em 1990 por meio de estratégia explícita de criação de um campeão nacional para competir com as empresas estrangeiras.O processo de privatização trazia como condição principal, para a participação de grupos interessados, o controle da participação acionária por capitais mexicanos.O grupo Carso, vencedor do processo, hoje opera em toda a América Latina, onde divide os diferentes mercados com a Telefonica.Os resultados desses dois processos de privatização, apoiados na criação de fortes atores produtivos nacionais, são visíveis: no caso da Telefonica, em 2006, 62% de sua receita total era obtida no exterior, enquanto 44% da receita total da Telmex se originava dessa maneira.Esses dois maiores participantes do mercado brasileiro de telefonis móvel estão longe de se constituir em produtos do "mercado".No caso da China e da Índia, apesar de que os serviços de telecomunicações estejam desregulamentados e abertos à concorrência privada, a intervenção governamental é ainda mais forte.Na Índia, mais de 90% do mercado de telefonia fixa é governamental (BSNL e MTNL). A telefonia móvel é dominada por empresa privadas de capital nacional, contando com mais de 20% de participação das empresas públicas. Tal situação se repete na produção de equipamentos de telecomunicações com a participação de empresas públicas, como ITI e Hindustan Cables.Na China, o mercado continua sendo caracterizado por forte controle, propriedade governamental e baixa internacionalização. A principal operadora em telefonia fixa e móvel (China Telecom) é de propriedade pública.A PTIC, empresa pública, controla mais de 60 produtores de equipamentos e há mais cinco empresas privadas de capital nacional que dominam esse segmento.Como resultado de políticas que privilegiam o controle nacional, as principais empresas privadas chinesas produtoras de equipamentos (Huawei e ZTE) tornaram-se multinacionais em um período relativamente curto, concorrendo em pé de igualdade com as gigantes do setor.Em 2003, a Huawei teve faturamento de US$ 3,8 bilhões, gastos em P&D de 385 milhões (10% do faturamento) e exportou produtos no valor de mais de US$ 1 bilhão para 87 operadores de telecomunicações em 31 países.China, Índia, Espanha e México são apenas alguns casos em que se demonstra que a participação ativa na economia crescentemente internacionalizada depende cada vez mais de estratégias onde os Estados nacionais cumprem o papel de provedor de mecanismos para a criação de riquezas, o qual vêm desempenhando desde o Renascimento.Em telecomunicações já fomos líderes mundiais em termos de capacitações, que foram maiormente destruídas, e necessitamos voltar a uma fase de criação.Como Celso Furtado já apontava em 1982: "Temos que interrogar-nos se... (vamos)... desempenhar um papel central na construção da própria história ou permanecer como espectadores enquanto o processo de transnacionalização define o lugar que... (nos)... cabe ocupar na imensa engrenagem que promete ser a economia globalizada do futuro."Valor Econômico, EU&Fim de Semana, 31/8)